Hibernal 03
Neva incessantemente . . .
Diante da lareira, mergulho num mar turvo de recordações . . .
O casarão era antigo, feio,
Envolto na sombra de árvores frondosas;
Havia uma grande varanda guarnecida
Por um imensoi portão de ferro,
Um corredor enorme que findava numa escada em espiral
Que levava ao sátão.
O sátão guardava a história de meus antepassados:
Armários, baús, quadros, fotografias, objetos vários;
Era um cômodo amplo, ladeado de janelões.
Gostava do janelão que dava para oeste:
Diante dele, existia uma árvore
Que na primavera perdia todas as folhas
E transformava-se num verdadeiro jardim suspenso
De cachos de flores amarelas . . .
Ao longe, via-se o rio, que fazia uma curva sinuosa,
Orlado de árvores com flores de cores várias,
Bambus que se curvavam sobre o rio
Numa reverência respeitosa e,
Para além de tudo isso,
Um vale muito verde que se perdia na imensidão . . .
Passava as tardes no sótão, revirando o conteúdo dos baús.
Numa tarde de outubro,
Encontrei uma caixa de música muito interessante:
Quando aberta, uma bailarina surgia saltitante
Ao compasso de uma música hipnotizante -
Foi minha grande descoberta . . .
Desde então, sentava-me no janelão,
Com a caixa de música ao colo,
Olhos postos no ocaso, ébrio de sonhos,
Desejoso de explorar as lonjuras
Que minha embriaguez galgava
Em passos trôpegos de pasmo inesperado
Diante do universo que se descortinava para além do vale . . .
Ergo-me para cerrar as cortinas
E pegar a caixa de música que ainda guardo comigo;
Na caixa de música colocada diante de mim,
A bailarina rodopia ao som de Billie Holiday,
Com a mesma graciosidade . . . Só eu não sou o mesmo . . .
A música desperta-me para a realidade da sala aquecida
Pelo fogo que crepita na lareira . . .
Afogo-me em ópio, vodka e blues . . .
Quantas recordações emergem do pântano
De se fingirem esquecimento,
Recordações vestidas de ângustias encharcadas de dolências! . . .
Perturbo-me, chego até a janela:
Meu Deus, meu Deus! . . .
Neva tristonhamente . . .
Oliveira