Cassiano, a moça do governo e a preta véia onisciente

Cassiano, atenda as palmas que gritam lá fora

Confirme do que suspeito

Que de uniforme, prancheta, questionário e gentileza: é do governo.

Querem nos inquirir nossa vida, nossos números,

nossos dados, nossa pobreza ascendente e consumista,

transfomá-la em estatística,

na qual não apareceremos, na qual seremos contabilizados

Mas a pergunta que me irrita Cassiano é aquela que não é feita

A mulher te olhará, te julgará café com leite,

e sem delongas, sem anunciação e sem vergonha,

te indicará pardo.

Por isso foi tu à porta Cassiano

Por mim não respondo, chego as vias de fato

Diga a ela que tú é preto

Autorizo má edução se te chamarem de moreno

Logo vi o problema na boa intenção da moça

Acha que chamar alguém de preto é xingamento

Repudie ser chamado de pardo

Repúdio por aqueles que isso inventaram.

Que não nos queriam pretos, porque eram uma minoria de brancos

Que não acreditavam que um país de pretos poderia ter futuro

e que fizeram da mistura das raças um motivo de orgulho.

Cinismo, Cassiano. Passaram a borracha no passado

Esqueceram os navios malcheirosos, apertados e infestados de mortos

Não mencionaram a chibata que salpicava as costas dos desobedientes

Estupraram as negras de casa e as sensualizaram como mulatas

Desnortearam o rastro de sangue e o rumo dos quilombos destruidos

Demonizaram os nossos ritos e nossos santos

Nosso batuque foi rebaixado, nossa capoeira criminalizada

E após tudo isso nos classificam como outra coisa

Querem apagar a existência de nossos antepassados

Como se fossemos culpados pela desgraça da qual sofremos

Pelo contrário, Cassiano, somos e sobrevivemos

Nunca nos esconderemos em outros termos

Nossos traços, nossos belos traços, nos foram legados por persistência

É um DNA que não é doença genética,

como tentam nos convencer a todo momento

Mostre teu cabelo crespo,

mostre tua pele escura,

mostre teu rosto,

mostre os dialetos de nosso sub-bairro

Se retifique preto

Se identifique preto

Insista, retruque, combata

Temos uma dívída a ser paga com os de outrora

Quitaremos!!!!

Provaremos que a resistência deles está em nosso sangue,

Até que nosso sangue deixe de ser derramado