VELAMENTO
Quem velará pelas crianças da rua?
Elas comem carne crua
Quando carne tem
Quando crua está
“Melhor que a podre”
Diz sempre a fortaleza humana a pesar valores.
Ambas as carnes encontradas no lixo
Dignidade vivida sob o risco
De bebê-resíduo à criança-lixo
Elas pedem esmola, quem dá!?
“Não é culpa minha”
“Problema meu não é”
“É necessário antes ter de educá-la”
Diz um muito cheio de si
Associando esmola com determinismo
Freud ou sabe lá quem mais!
“Se der se acostuma, não trabalhará”, diz alguém.
Não quer perceber:
Para a pança delas a trave do neoliberalismo é difícil
De ser digerida sozinha se o suco gástrico corrói pedaços
De sua parede intestinal, a cada dia que passa.
Quem olhará pelas crianças da rua?
Pedem um prato de comida e dizem:
“Venha um outro dia, hoje eu não tenho”
E o armário repleto vive para esbanjar
E sem consciência, de noite o rosbife faz a alegria...
E os caprichos.
Depois estes rezam a seus deuses
Que os perdoem porque nunca tem nada para doar
Visto que não é possível o desperdício!
“Cadê seus pais? Eis os sequazes culpados.”
Mas a verdade é que seus pais morreram.
Adoeceram, fugiram, espancados
Foram sumariamente executados.
Mataram-lhes por um conto de réis
Foram todos, não foi ninguém.
Juízes, juízo!
Alguém veio para vê-las?
Alguém as viu para velá-las?
Alguém zelou por elas para vê-las vivas?
Somos seus réus de alguma forma.
Dentro de alguma fôrma macro-organizadora de status permanentes
Um poder comunitário que cega e executa a lei
E desculpa-se para agir mal.
Alguns dizem sistema
Outros já não dizem mais
Não parece adiantar
“Não, aqui é orfanato!”
A partir daí são lançadas para um infernato
Um inferno nato, nas febéns
Só pra combinar com abandonado.
Acaso, sobrou alguém para dar-lhes enterro digno?
Mas eu lhe pergunto: para quê enterro digno
Se a vida foi simplesmente lixo?
Ninguém se lixa, por “isso”
Ninguém se lixa por lixo.
Exceto aqueles que reciclam vidas.
Por aqueles que não, comamos do lixo para provar as suas provações
Comamos do lixo
Adicionemos maionese e façamos uma salada
Façamos uma prece
Por ainda estarmos vivos
Por não fazermos nada
Façamos ação de graças
Uma oração hipócrita
Por estarem mortas.
Beba tua COCA-COLA, tranqüilo.
Coça tuas costas e vomita
A criança emudecida, que ninguém escuta, ninguém olha
Quem se incomoda?
Apenas suportam.
Celebremos o cerebelo liquefeito dos fetos
recém-nascidos mortos
recém-mortos nascidos
Nos aterros sanitários das consciências
E dá que convivamos com os vermes.
Enquanto filósofos pensam, mais outras crianças sangram.
Enquanto a socialite clama por consumismo, reclama teus vícios...
Para elas é a morte que as tornam realmente livres.
Crianças crescem.
Eles parecem esquecer!
Se por um tempo elas são para a humanidade risco
Tornam pouco depois feridas
E sangram a vida, se não bem curadas.
Como desejar a morte para quem já tinha perdido a vida
por causa de nossas omissões suicidas
de humanas criaturas que se assassinam
(sumariamente e não)?
O jovem criminoso não é mais que a criança como foi preterida
concebida e gerada ontem, daí...
E para quem acredita que a muda muda, lembro esperançoso
que no começo o risco se torna rachadura...
para se tornar abismo...
e se fazer pangéia.
Enfim, bebamos a sorte de nossas crianças.
E a inércia das pedras!