Ao Filho Que Não Tive
Poderia ser um testamento,
Se fosse para o proveito um ente,
Mas não possui tal provimento,
A função é expor algo mais abrangente.
Minha herança é a vida,
Com todos os seus percalços,
Nem sabia se acordaria,
Incerteza de dias inusitados.
Tanta manhãs cinzas,
Paisagem de poeirentas fábricas,
O ar respirado nos contamina,
Parece uma história trágica.
Se é que existe historicidade que não seja.
Penso nas crianças correndo,
Ainda não dando conta da maturidade,
Onde o mundo se torna violento,
Muitas já sabem disso desde tenra idade.
Os sons de veículos raivosos,
Armas disparadas,
Cotidiano de hábitos desastrosos,
Aborto de grávidas.
Pregação de fiéis exaltados,
Mendigos lançados em frente de nossas casas,
Jamais os fazemos de abrigados,
Nunca temos responsabilidade por nada.
Ainda que todo instante a consciência perceba.
Animais sofrendo por maus tratos,
Animais-humanos sofrem também,
Sujeito comparado a rato,
Alguns roedores tem dignidade muito além.
Assaltos de marginalizados,
Famílias famintas,
Sem terras, proletários,
Na favela a mãe grita.
A economia só tem cifras,
Que sejam agradáveis,
A uma pequena parcela que se privilegia,
Com a desgraça da massa de miseráveis.
Embora a miserabilidade ética a todos comprometa.
Escolas com falta de alunos,
Alunos sem ensino de qualidade,
Ensino feito para disciplinar no mundo,
Mundo ditado por diferenças de classes.
Religiões que proliferam,
Na falta de solução imediata,
Dizem que paraísos nos esperam,
Enquanto aqui padece a gente desprivilegiada.
Arte que já se faz morta,
Representando o já representado,
Esperamos uma que nos conforta,
Parece que vai demorar o dia esperado.
Mesmo assim os artistas tentam se fazer profetas.
Arquitetura revelando a dureza humana,
Rispidez de construções brutas,
Geopolítica que delimita fronteiras tirânicas,
Segregação que promove lutas.
Não fazemos amor, apenas sexo,
Máquinas reprodutoras de gente,
Gente que é pouco afeto e mais feto,
Em matéria de sentir, somos incompetentes.
Governos que elegemos ou não,
Politização que é instrumental desesperançoso,
Por mais que tenha expectativa na votação,
Os resultados são destinados a parcela miúda do povo.
Sejamos francos, basta de falsas promessas.
Desgaste no mercado de trabalho,
Alguns assumem uma postura chamada de hippie,
Opta-se por de um sistema urbano ser escravo,
Ou recorre-se a natureza que a ninguém prejudique, há quem acredite.
Lares onde sujeitos se suportam,
Aqueles conflitos diários,
Valores misturados que incomodam,
Cometem até assassinatos.
Os não-cidadãos, antigos nativos, índios,
Excluídos dos direitos, incluídos em deveres,
Como o dever de adoecer, ter seu território subtraído,
Tratados como exóticos pela diferença cultural feita entre nós e eles.
No final estamos no mesmo barco à deriva, empurrados mesmo sem velas.
Chegam as festividades,
Forma de liberar a tensão,
Exalta-se a agressividade,
Muitas acabam em confusão.
Burocracia que promete menos burocratização,
Mas que cada dia se burocratiza mais,
Afogados nisso que denominaram civilização,
Tratando outros “civilizados” como desiguais.
As leis estão aí para todos,
Mas é um todo menos totalitário,
Atinge uma parcela desse ficcional corpo,
Uns são feitos de notáveis, privilegiados.
Ainda que o discurso “Liberté, Egalité, Fraternité” continua em nossas cabeças.
Queria mesmo se tivesse um filho,
Deixar a ele um belíssimo legado,
Mas talvez por não ter pensei em algo menos lírico,
Já que a realidade pertence aos revolucionários.
Então se um dia tiver, que não tenha lutado em vão,
Pode o rebento assumir postura de combate,
Já que não é batalha que se resolva em uma só geração,
Genealogia construída por diferentes partes.
Por isso, chamo de filho todo aquele epígono,
Não que venha continuar um já feito,
Mas que faça por si, dê continuidade a isso,
O desenvolvimento do novo moverá a seu jeito.
O resto que escapa irá seguir seu próprio curso, independente de quantos de nós pereça.