O Analfabeto Que Sabia Ler
Nasci em realidade dolorosa,
Família larga,
Desde pequeno na lida,
Mulher e homem trabalha,
Filho de pobre,
Desde pequeno labuta,
Miséria que condiciona ao dever,
Direitos nem se pensa a respeito,
Cabo de enxada no lugar de lápis,
Borracha é arado,
Caderno é lavoura,
Uniforme é uniforme em qualquer lugar,
Dorme depois que o sol se põe,
Levanta antes do sol nascer,
Escuridão noturna que marca horário,
Hora de dormir,
Descanso do corpo cansado, sofrido,
Acordar mais cedo ainda,
O campo exige esforço titânico,
As mãos engrossadas,
Boas pro roçado,
Pouco práticas pra caligrafia,
Passa pelos intelectuais de cabeça baixa,
Sempre sobra algum insulto,
Usam o velho termo educacional,
Para humilhar o sujeito,
Chama-no mobral,
Muito “mestre” com empáfia,
Arrotando ser maioral,
Fala da geografia de livros,
Nem se dão conta dos melindres da terra,
Teólogos com bíblia embaixo do sovaco,
Desconhecem o valor da oração sentida,
Estudantes arrotam prepotência,
Imaturidade com rebeldia,
Letrados que dizem conhecer,
Conhecedores de letras,
Símbolos feito os que demarcam o terreno,
Engenheiro cheio de si,
Não se mete ao pesado trabalho de construir,
Traçam planos,
Mas o chamado peão mete a mão na massa,
Ele mesmo faz parte dela,
Massa proletária,
Um dia disseram algo assim,
Não sabem como esquentar banco de escola,
Mas escaldam embaixo do sol quente,
Suor pinga,
Sem descanso,
Engole a marmita mal requentada,
Misturada de comida,
Nada de separações gastronômicas,
Um companheiro fala bem,
“No estômago mistura tudo do mesmo jeito”,
As horas passam devagar,
É luxo adoecer,
Cair de cama só pro breve restabelecer de forças,
Hospital só nas últimas,
Depois é direto pro cemitério,
Professora com ar de feminilidade enrustida,
Embaixo da sobriedade,
Sobe um fogo desgraçado,
Também lutam,
Batalha de diversas profissões,
Eu, analfabeto,
Me fazendo ler por um literato,
Que com certeza fará correções,
Não me dando nem a justiça dos “erros”,
Pois me chamam de errado,
À margem,
Só se for da linha da pobreza,
Expressado por palavras,
Pois a sociedade só reconhece o valor de alguém,
Através da escrita,
Ainda com respaldo técnico para ter importância,
Sigo minha declaração,
Esse filho de uma república letrada,
Que marginaliza seus filhos ágrafos,
Relegando-os a condição de inferiores,
Só sendo solicitados em época de voto,
Nessa hora basta um polegar,
Um apertar de teclas,
Vale tudo pra eleger quem possa governar,
Mas basta eleger-se,
Volta a rotina,
O lema é: “Vamos acabar com o analfabetismo.”,
Nas entrelinhas está escrito “acabar com analfabetos”,
Derrotados por não lerem,
Mas aqui me faço lido,
Tenho mais revelações,
Eu e tantos outros,
Conseguimos ler,
O fato de não entender da forma como desejam,
Não desqualifica o nível de compreensão,
Pois estas semiótica,
Se faz cabala,
Com intuito de expor o “isso é certo”,
Afastando a prole indesejada,
Filhos de uma mesma pátria,
Uns com ordem e progresso,
Outros banidos do estandarte magnífico tupiniquim,
Consigo ler além da técnica acadêmica,
Busco no olhar o significado expresso,
Nos sinais da mulher embuchada,
Deixamos pra trás muito médico,
Receitas caseiras que deixam no chinelo,
Experientes boticários,
Farmacêuticos, como queiram chamá-los,
Pra mim, fazedores de unguento,
Pastor vem proclamar palavras divinas,
Mas se são palavras,
Não deveriam estar escritas,
Além disso,
O próprio pregador,
Confessou em bela passagem,
Que o deus se manifesta no coração da gente,
Pra que interpretar caligrafia de apóstolo,
Já que o sentido está na essência?
A televisão despeja nas vistas,
Os rádios nos ouvidos,
Traçam linhas disso e daquilo,
Os técnicos experientes de futebol,
No campinho de terra batida é que se cria a arte,
As regas só tiram a graça do espetáculo,
Como o ato de fazer amor,
Especialistas dão cada nome,
Parece peça de máquina encaixando,
Vou do jeito que meu pai me criou,
Aprendendo as manhas,
Chamando nos peitos uma boa dama,
Nome nós damos pra chamar,
Registro em cartório é apenas embromação,
Na hora dos direitos de cidadão,
Filho de gente miúda leva sopapo,
Cai em cela de prisão,
Minha vó sabia receita decorada,
Não perdia o ponto,
Esses caderninhos que as mocinhas carregam,
Feito secretos diários,
Contendo receitas copiadas, sem tempero marcante,
Mecânico de mão cheia aprende no tranco,
Os de diploma só projetam arma de morte,
Ciência ensinada pra destruir o próprio povo,
Sigo na história oral da minha gente,
Acrescenta um ponto aqui, outro lá,
Agrega uns ditos em cadência de verso,
Forma de enfeitar o pavão,
Lirismo de senso comum,
Me agrada conversar com os meus,
Filho do vizinho nem se faz entender,
Se meteu em finos colégios,
Até latim foi aprender,
Enrola a língua de uma forma,
Nem namorar o indivíduo namora,
Fez uma poesia pra uma pretendente,
Um gaiato chegou manso,
Com dois olhares furtivos e um sorriso maroto,
Papou a dita cuja,
O homo intellectus não ficou nem com os versos,
Querem fazer ler até cachorro,
Tem chimpanzé dando peruada,
Gringo bebe olhando o rótulo,
Eu avalio no trago,
Cigarro de indústria é porcaria,
Bom mesmo é sem maço, só na palha enroladinha,
Cada história que os velhos contam,
Deixam esses romancistas no chinelo,
Romantismo são os feitos de caboclos,
Enfrentam família, mulher pega barriga,
Suspiros, cabaço perdido no mato,
Nada daquele dramalhão de Romeu e Julieta,
A coisa se dá com mais firmeza,
Menos choro,
Quando morre, o rito é celebrado,
Papelada funerária só serve pra herdeiro vistoso,
Fizeram as leis,
Disseram que Direito é coisa de instruído,
A maioria não sabe ler,
Os doutos sabendo, fazem de não sabidos,
Antes ignorar por não saber,
Tentam colher alguma grafia do “analfa”,
Outro epíteto usado,
O falado perdeu o poder moral,
Precisa selar, carimbar, autenticar,
Escrita sobre escrita, sobrescrito,
Tanta letrinha impressa,
Jornal, revista, embora a foto faça mais sucesso,
Descrição de mulher bonita é uma coisa,
Foto causa outra impressão,
Ao vivo pode causa decepção,
Algumas, seja feita justiça,
São muito acima de qualquer fotografia ou escrita,
O gestual foi feito linguajar perto do rabiscado,
Surdo e mudo se desdobra nos gestos espalhafatosos,
Dor, nem se fala,
Quem sente sabe impossível descrever,
Amor é felicidade que não se rende a grafismos,
Arrebenta coração, também promove encher de papel,
Mas isso cu também faz ao espirrar merda,
Agora nem o escritor se conteve,
Rasgou de vez o formal,
Mas como não é escrito pra doutor apreciar,
Rompe o verbo, o verso,
Sou um mero analfabeto,
Pra quem a piedade alheia se faz de arrogância,
“Coitado, não sabe ler e nem escrever”,
Imagina ler sem escrever ou vice-versa,
Um analfabeta capenga,
Maneta de escrita ou cego das vistas,
Orgulhosamente sou ambos,
Leitura que faço é de sentimento,
Choro quando tem que chorar,
Solto sorriso na hora de rir,
Beijo nem sempre na hora de beijar,
Me entendo e me faço entender entre os meus,
Pra esse empolado doutorado povinho,
Resisto feito em longínquos tempos, os nossos índios,
Mantendo a raiz menos corrompida,
Ligado a minha terra amada,
Que dá o sustento dos meus filhos,
Nessa imensidão chamada Brasil.