O Velho
Sentado no meio fio,
Apreciando a vida passar,
No canto da boca um sorriso,
E no outro um cachimbo a pitar.
Os garotos passavam e mexiam,
Não davam valor às rugas,
Uns até mesmo o agrediam,
Coisa de jovem sem nada na cuca.
O velhote não ligava mais para o tempo,
Sabia que existe um prazo e o seu estava findo,
Não se entristecia nem se depreciava em lamento,
Vivia com dignidade e agia a cada instante com afinco.
Os jovens vestidos de farda passavam,
Lembrava-se do seu tempo de reservista.
- Vai se tornar homem!, assim indagavam.
Mas no quartel teve uma outra perspectiva.
Os exercícios e a rotina eram exaustivas,
Atendados sexuais ocorriam com frequência,
Poderia lutar em disputas violentas, agressivas,
Ou se render a sodomia, tentando demonstrar indiferença.
Acabou sendo requisitado para a Guerra do Paraguai,
Teve destaque no conflito, presenciou o horror,
Uns os chamaram de heróis, homens sem iguais,
Mas na memória só restava resquício de um pavor.
Heroísmo deveria ser algo que beneficiasse,
Trouxesse fortuna às outras pessoas,
Mas odiava o inimigo, e ai se não odiasse,
Viu morrer na sua frente muita gente boa.
Mulheres não eram poupadas,
As crianças também sofriam,
Jovens eram brutalmente violadas,
Os pais delas não mais sorriam.
Com animais era pura covardia,
Como se nós não fossemos como eles,
O homem é o lobo do homem, alguém já dizia,
Espetáculos grotescos vistos diversas vezes.
O inimigo era visto como não humano,
Brutalizava-se sem piedade alguma,
Pedaços de corpos eram troféus profanos,
Armas em punho e indo para a luta.
Dizem que na guerra valia o "ser brasileiro",
Sem qualquer diferenciação de classe,
Mas o que mais se via morrendo era sujeito negro,
Os brancos eram poucos, como de práxis.
Vez ou outra o idoso fecha os olhos,
Surgem sons do guerrear na mente,
Imagens de valas cheias de corpos,
Parece estar ficando demente.
Quando seu neto nasceu,
Nem uma lágrima sequer
Do seu olho seco escorreu,
Só quem notou foi sua mulher.
O avô estava feliz pelo filho,
Mas não pelo rebento,
Vir a esse mundo dolorido,
É castigo, angústia, tormento.
Bebeu um gole da branquinha,
Guardava a garrafa escondida,
Atrás de livros na escrivaninha,
Apreciava uma boa tragada da bebida.
Seus filhos diziam que beber fazia mal,
Hoje em dia o que não faz, ele se perguntava?
Não abandonava sua caninha matinal,
A crítica entrava num ouvido e no outro se dispersava.
Gostava de cultivar a barba grisalha,
Sentia-se mais austero frente ao mundo,
Um dia se cansou e passou a navalha,
Mostrou seus traços do rosto sem resmungo.
A criançada da rua fazia as mesmas brincadeiras,
Diversão de bairro proletário, dá-se o jeito de brincar,
Desde pequena a molecada aprende a dureza,
De ter que ser valente para se fazer respeitar.
O olhar do velhinho pousa sobre a moça,
Vestidinho que o vento joga para o alto,
Pensa que nos tempos de rapaz, seduzir era sopa,
Agora dá saudade dos amores incautos.
Cochilava facilmente encostado na calçada,
Nem incomodava a barulheira das ruas,
O corpo todo amolecia e logo descansava,
Discretamente o peso da idade se insinua.
Um bêbado quase desmaiado,
Na verdade alcoólatra,
Passou cambeleando de lado,
Não tardou encontrar sua cova.
O ancião era respeitado no bairro,
Pediam conselhos a ele e ouviam suas histórias,
Era dos poucos que na venda comprava fiado,
Tinha muito assunto guardado em sua ilustre memória.
Enterrou a mulher já de coração duro,
Manteve-se forte e cuidou dos filhos,
Sabia que não podia se dar ao luxo,
Precisava dar dignidade aos meninos.
Era bom com as mãos,
Fazia trabalho de carpinteiro,
Inconparável artesão,
Com a madeira ele tinha jeito.
Se orgulhava muito do que fazia,
Era religioso, se dedicava a fazer o dito "certo",
Apesar de analfabeto, para ele liam a bíblia,
Tinha a profissão de Jesus, disse-lhe o neto.
Viu um negrinho levando uma surra da polícia,
O coração ficou apertado e nada podia fazer,
Quando pequeno o mesmo lhe acontecia,
Engolia o choro e esperava a dor da pancada arrefecer.
Tinha boa saúde, quase nunca ia ao médic o,
Usava mais do conhecimento dos parentes,
Tinha muita planta que lhe servia de remédio,
Até indicava garrafadas a muitos doentes.
Frequentava a missa católica fielmente,
Mas nunca deixava suas obrigações no terreiro,
Acreditava no compromisso que traidicionalmente,
Ligava-o com seus ancestrais do povo africano guerreiro.
Uma vez foi chamado de preto velho,
Apelidado de crioulo macumbeiro,
Não conseguiram tirá-lo do sério,
Não se intimidava com tal preconceito.
Procurou educar a família,
Mostrando que o discurso é igual,
Mas a vida é desigual, se ressentia,
Sabia como é ser tratado de forma marginal.
Uma de suas filhas, voltando de noite pra casa,
Depois de um dia trabalhando duro,
Foi atacada por três marmanjos de família ricaça,
Fizeram miséria num beco escuro.
A mocinha ainda não conhecia o sexo,
Foi penetrada de forma covarde,
Gritou e procurou ajuda por perto,
Mas sem socorro, quase morreu na mão dos trastes.
O velho se recordou de quando foi à delegacia,
Demorou serem atendidos, apesar da gravidade,
O delegado disse não ser caso sério, que averiguaria,
Completando que era apenas uma negrinha, sem escolaridade.
Foi aquela a última vez que o velhote havia chorado,
Aprendeu que deveria ser duro como a rocha,
Viveu dignamente num humilde e honesto sobrado,
Os filhos mais novos conseguiram ir para a escola
Seu legado era moral, não financeiro,
Os descendentes não se desviaram do caminho,
Cada um ganhou a vida do seu jeito,
Um deles até conseguiu comprar um carrinho.
Em frente à rua sente o cheiro do café,
Fresquinho, coado a poucos instantes,
Resolve beber um gole e fica de pé,
Se escora na parede e a vista turva num relance.
Procura firmeza na bengala,
Não consegue sustentar-se,
Cai de uma vez na calçada,
Alguns transeuntes prestam resgate.
O velho começou a se recordar,
Inclusive de coisas aparentemente esquecidas,
Logo depois estava morto, não conseguiu aguentar,
Os desinformados disseram ser mais um indigente para as estatíticas.