O Músico
Infância marcadamente violenta,
Oriundo de uma realidade tórrida,
Produto de uma classe intelectualmente definida,
Fugindo nos dissabores diários a qualquer lógica.
Negro, por terem dito ser assim,
Mais pelo conceito do que pela genética,
Relegado a uma marginalização sem fim,
Aprendendo a viver com malícia, sem esquecer a ética.
Nos subúrbios apreendeu uma cultura diferente,
As tribos possuíam uma linguagem complexa,
Era o ambiente que margeava o imaginário adolescente,
Espaço de conflitos onde a vida se esvai depressa.
Cresceu objetivando um sonho,
A música, que conheceu um dia,
Inspirado pelo jazz americano,
Desejava executar o som com maestria.
Apesar de alguns comentarem ser estrangeirismo,
O que valia era o sentir que a música proporcionava,
Mais aculturação do que as lojas do bairro com um inglês brasileiríssimo?
Era um fenômeno que a todos afetava.
A vida era trilhada por caminhos tortuosos,
Saindo de um casebre modesto no interior,
Agora habitava um barraco metropolitano dos mais virtuosos,
Trabalhando muito, ganhando pouco, visto como inferior.
Tinha consciência de fazer parte de uma fração da sociedade,
Que é responsável pela estruturação e manutenção da mesma,
Em compensação, tratados desumanamente, pela desigualdade,
Massacrados por um fardo que é possível deduzir a real natureza.
Tendo sua vontade de músico atendida em migalhas,
Um esforço ou outro garantem a compra de algum disco,
Pirata é claro, esse é o consumo de direito das massas,
Criando uma atmofesra mercadológica paralela ao elitizado consumismo.
Violentado ao retornar da labuta diária,
Sendo revistado de forma brutal por defensores da lei,
Alguns sopapos e vai pra favela, humilhado, sente-se um pária,
Engole seco as lágrimas e soluços, sabe que se alimentam dos que fazem sofrer.
Hoje foi anunciado que faltará água,
Apesar do saneamento precário e conta alta,
Ainda assim somos os primeiros a serem afetados, essa é a tática,
Cidadãos menos cidadãos que outros, mas quem se importa?
Vez ou outra precisa esconder-se de projéteis disparados,
As balas perdidas podem ter a sorte de encontrá-lo,
Seria mais um no gráfico das estatísticas dos contabilizados,
No máximo causará suspiro a uma pessoa mais sensível, lendo seu jornal diário.
Não ousa contrariar as absurdas ordens patronais,
Antes cumprir a estupidez, do que não ter o salário que garante sobreviver,
Sujeitando-se a afazeres muitas vezes irracionais,
Um “bom” servente, resignado a uma normatização militarizada, que só permite obedecer.
A música, sua fuga efêmera, oásis de um deserto do desespero,
É provada pouco a pouco, como pequenos goles de fonte límpida,
Amenizando o que nem a religião conseguiu suprir ao convertê-lo,
Possibilitando resgatar um ideal que confronta a realidade insípida.
Pai de família, tendo seu sonho suprimido,
Agora vive de sonhos alheios, simulando nas compras,
Aquilo que projetou fazer por certo período,
Conformado em ser um apêndice, público que aos músicos devota honras.
Transposição sublime que é possível na relação de alteridade,
Funcional em seu ofício e projetista na realização alheia,
Consubstanciando distinções que consolidam o ideal de sociedade,
Caleidoscópio cultural que influencia e norteia.
Um dia qualquer, por uma viela escura,
Nosso herói é assaltado, por outro excluído como ele,
Antes de retirar do bolso a carteira,
Já havia sido baleado na cabeça, duas vezes.
Acabou compondo a estatística local,
A família inconsolada chorava,
Pela onda de violência do momento, noticiaram até no jornal,
Chorar, noticiar, nada mais adiantava.
Seu enterro foi popular e seu sonho realizado,
Músicos tocaram avidamente no velório,
Imperou as canções gospel, assim mandava a religião do sepultado,
Foi emocionante e empolgante o repertório.
Alguns perceberam um ou outro músico,
Fazendo um jazz tímido, ou cantando um blues mais exaltado,
Se chegou aos ouvidos do morto, alguns diriam que sim, eu duvido,
Mas ficou a lição de vida de um homem comum, incomumemente relatado.