Sr. José
Um entre tantos Josés por este Brasil,
Uma infância simples de família camponesa,
Muitos irmãos, educação rigidamente varonil,
Éramos solidários por socialização da pobreza.
Aprendi precocemente a lida na lavoura,
Sabia como ninguém enrolar um cigarro de palha,
Acompanhei a modernização do campo, que foi avassaladora,
Logo começaram as migrações para as cidades, abandonavam suas casas.
Procuramos resistir o quanto foi possível,
Talvez pelo receio da novidade de futuro incerto,
O fato é que o campo era nosso advir mais verossímel,
As metrópoles industrializadas tratavam-nos feito degeto.
Pode ser que minha visão seja restrita a algum romantismo da época,
Mas de forma geral, não era tão longe de uma realidade que viria,
Sempre me posicionei, em relação a inovações, de forma muito cética,
Um conservadorista arraigado por uma tradição que contamina.
A casa, como a maioria dos utensílios, nós mesmos produzíamos,
Artesanato magistral pela eficiência cotidiana,
O trabalho era duro mais compensava o fárduo no final de um dia,
Tínhamos noção da funcionalidade do emprego da força humana.
Depois viria o “progresso”, começamos a nos sentir assalariados,
O emprego exaure e deixamos de compreender o sentido,
Sabemos da condição de exploração que nos faz espoliados,
Alguns se sujeitam com esperança de um dia ser explorador, ironia dum trágico destino.
Nas batalhas do dia-a-dia sobrevivemos,
Ocorreu o êxodo familiar, fui um dos que desgarraram,
Nunca fui de lamentar o que a vida reserva, hoje eu compreendo,
Encarei a realidade com a força extra daqueles que antes de mim desanimaram.
Já em fase adulta resolvi me educar,
Fantástica as formas das palavras, o conhecimento de livros,
Mas ainda me recordo de um ensino maior antes de alfabetizar,
Grandes mestres passaram em minha vida, tendo-os por amigos.
Na lida com a terra pude respeitar a natureza,
Hoje discutem sobre o meio ambiente em escala mundial,
Como preservar se não conhecem o processo com clareza,
Estão escravizados perante o aparato ténico-industrial.
Não me privo o prazer de uma leitura,
Deitado na rede ou na confortável poltrona,
Presente do Dia dos Pais para demonstrar ternura,
Os abraços são restritos a um dia, lastimo, mas até na lástima tenho parcimônia.
Tive filhos que me enchem de orgulho,
Netos que revigoram minha vida que se esvai,
Agora na velhice, percebo o fim mais próximo,
Mas não me entristeço, sei que é o sentido em existir.
As rugas chegaram e modelam minha pele,
São as marcas do tempo que tatuam suas impressões,
A rigidez jovial se foi e chegou a flacidez feito frete,
Tenho um acúmulo de pequenas memórias que me dão ares de erudito ancião.
Nas ruas enfrento o desdém da sociedade “moderna”,
Sou tido como ultrapassado, fui trocado pelo “novo”,
Mas perdi o sentido antes de perder a vida, sensação hodierna,
Sou enxovalhado por ser considerado fardo desastroso.
Não temos mais passado para valorizar os construtores do presente,
No máximo uma contemporaneidade que busca heróis empalhados,
Uma presença de corpo que na produtividade voraz é figura ausente,
Me sinto feito uma peça que precisa de manutenção, mesmo sem uso operário.
Esse mês fui receber minha aposentadoria,
Cada vez ela decresce, embora as necessidades aumentem,
Parece ironia viver, conseguir suportar é quase uma aporia,
Mas a razão está nas conquistas humanas, isso não corrompem, por mais que tentem.
Observo o olhar brilhante do meu neto mais novo,
Tão cheio de vida e inocência, logo terá crescido,
Não mais estarei existindo e ele diante da difícil arte de sobreviver denovo,
Para se chegar à velhice, sofrer por ter seus feitos esquecidos.
As doenças também chegam impetuosas,
Severas para com os dentro em breve falecidos,
Por outro lado o carinho familiar demonstra dedicações virtuosas,
Além do aconchegante cantinho reservado ao mais nobre parente vivo.
Vez ou outra esboço um sorriso no canto da boca,
Quando vejo cometerem atos que conheço o desfecho,
Dedução de quem experienciou caindo e levantando, disso retirando força,
Ensinando agora por retórica aos que ainda lhe tem apreço.
O foco mudou, como a cada etapa ultrapassada,
Valores que estão em movimento,
Muitas vezes nos feitos dos outros que tenho minha emoção resgatada,
Não me contento em assistir tv, gosto de interagir com mais envolvimento.
Meu legado é a perpetuação da descendência,
Os bens que a pecúnia puderam comprar são de pouca monta,
Com certeza os netos não terão a minha carência,
Talvez até provoque desvios a quem não soube o valor do que parece vir de forma pronta.
De jovem empirista lavrador, passei a velho idealizador,
Mantenho traços comuns entre o que fui e o que sou,
Ainda existem universos dos que me olham pelo exterior,
Uma variedade de formas que desaparecerão feito imagens que alguém um dia sonhou.
Não me apeguei a nenhuma religião para conforto,
A vida em si já me serve de motivo por excelência,
A origem ou a causa apenas transformam o agora em algo morto,
Mas sou intenso em viver, essa é minha ciência.
Li sobre a valorização dos africanos aos mais velhos,
Cultura oral que reconhece o papel do idoso,
Outra tradição que o Ocidente não segue pelo preconceito colonial ainda em aberto,
Reproduzimos apenas o que uma minoria considera proveitoso.
Estou doente, qualquer dia faleço,
Mesmo assim não largo o tabaco,
Tradição de vício que mantenho com apreço,
Como a pinguinha envelhecida que todo dia dou um trago.
Minha esposa contrariou a lógica natural,
Faleceu primeiro, deixando muita saudade,
Fiquei por um tempinho a mais, coisas de um destino casual,
Agora contemplo o sossego com felicidade.
A velhice é o orgulho de ter chegado tão longe,
Somado a uma consciência amadurecida, privilégio de poucos,
Todo o resto o tempo se encarrega e consome,
Sou um totem vivo que a sociedade renega como forma de deteriorar a cultura do povo.