A Filhinha

Menina meiga de olhos vibrantes,

Adornada com adereços da moda,

Sua mãe a tinha por bibelô isinuante,

Caminhava desengonçada pelas ruas sinuosas.

Aprendeu a ler em uma cartilha bem desenhada,

Passava os dedos sobre as figuras coloridas,

Sentiu a felicidade de fazer vibrar na língua as primeiras palavras,

Ia pra escolhinha de vestidinho simples de chita.

Alegre, com um sorriso que amolecia corações rudes,

Disposta a doar um carinho comovente nos momentos conflituosos,

Gargalhava até faltar o ar, algumas vezes fazia birra por ciúme,

Criança vivendo sua infância, sem lamentos adultos desesperançosos.

Bonequinha que em festas, fantasiada, lembrava uma vivaz colombina,

Serelepe de um fôlego invejável aos mais atléticos,

Candura que desabrocha feito flor rara que germina na árvore da vida,

Rodopiando para acompanhar redemoinhos aéreos.

Destemida frente as curiosidades das primeiras descobertas,

Medrosa diante de uma fantasia medonha da imaginação infantil,

Rápida em lançar perguntas embaraçantes às pessoas que se julgam espertas,

Não necessitando compreender o jogo de palavras que adultos usam como ardil.

Débil criaturinha que carece da proteção vigorosa,

Frágil corpinho num desenvolvimento primevo,

Cantarolando partes de alguma canção popularmente irrisória,

Dançando desajeitadamente pelo ritmo que impõe seu preço.

Ontem estava engatinhando, hoje caminha descompromissada,

Do útero ao lar, da família ao mundo exterior, de volta ao recanto particular,

Lidando por conveniência social com outra gama de criançada,

Desfilando entre olhares curiosos que a iriam perscrutar.

Queridinha do papai por dizer nas primeiras sílabas, pa-pa,

Inspiração da mãe pelos trejeitos angelicais,

Veio ao mundo minuciosamente desejada, tudo como havia de se esperar,

Seu choro pós-parto foi de triunfo perante os pais.

Precoce, feito todo filho estimado,

Ansiava por desvelar os segredos,

Convencia pelo seu suave afago,

Esmorecia apenas quando sentia medo.

Oásis raro que foi deveras descoberto,

Atraía não apenas olhares puritanos,

Estava a serviço de um inimigo incerto,

Exposta a desejos incontroláveis, insanos.

Sentada na poltrona vermelha que adorava,

Onde costumava assistir desenhos na tv,

Os pais compromissados na moderna jornada,

Trabalhavam o dia todo para as regalias da sua preciosidade atender.

Na busca pelo auxílio amigo,

Sempre aparece um “bom samaritano”,

Um tio de moral ilibada, prestativo,

Com família constituída, aposentado, ufano.

Sujeito solícito aos que necessitam de seus préstimos,

Dócil sob o olhar mais malicioso,

Gentil para com as mulheres e os mais céticos,

Companheiro fiel para qualquer irmão, esposo.

A filhinha se diverte ao rever desenhos clássicos,

O prestimoso tio, sentado ao lado, se aproxima furtivamente,

Um braço sobre os ombrinhos desnudos, se faz de simpático,

A visão de lobo esmiuçando a presa indefesa, impotente.

Dedos grossos e atrevidos deslizam nas dobrinhas da pele,

Um sorriso no canto da boca disfarça a aflição,

Adrenalina por poder ser descoberto e ser tratado feito verme,

Ao mesmo tempo o prazer doentio que o faz executar a ação.

O jogo é lento, aos poucos a ousadia aumenta,

A jovenzinha ainda esboça aos pais alguns indícios,

Mas quem há de suspeitar de tal estratagema,

A menininha se rende às ameaças desse execrável gentil.

O momento derradeiro chega, além de ter sido molestada,

Sofrerá violência ainda maior, conhecerá o sexo precocemente,

Sem romantismos amorosos, resta-lhe apenas dor, foi estuprada,

Os olhos fazem cair um choro torrencial, mas os gemidos são contidos silenciosamente.

O velho bufa sobre as suas bochechas rosadas,

Aquele peso excessivo, o odor fétido,

O suor pingando do carrasco, enquanto está sendo deflorada,

Um grito ecoa dentro da garota, feito pesadelo intrépido.

O algoz se retira satisfeito, a jovem fica inconsolável,

Chegam os tutores, acolhem sua beldade,

Tudo vem à tona, o mal se tornou irreparável,

A justiça é feita e encontram o criminoso pela cidade.

Escândalo para os familiares do malfeitor,

Suas filhinhas são apontadas, exemplo de estigma,

A mulher em prantos, na sua fé, pede forças ao seu Senhor,

O estuprador deve ser morto, clama a família vitimada.

O “anjinho” foi pervertido pela vilania,

O pai, impotente, amargurado, se torna austero,

A mãe depressiva, tomará remédios por toda a vida,

A filha, nunca mais enxergará os homens da mesma maneira, isso é certo.

O culpado, sentenciado, foi morto em uma cela,

A imprensa noticiou, mas todos disseram ter sido merecido,

A menina virou mocinha e menstruou na idade certa,

Anda cabisbaixa por não ter mais a alegria como sentido.

Essa história não termina e nem começa aqui,

A realidade pérfida está à espreita nos mais ternos lares,

Uma sombra que a qualquer momento poderá eclodir,

O monstro escondido entre as diversas máscaras que ocultam as verdadeiras faces.