O Jovem D.

Nasceu em alguma favela carioca,

Seu sobrenome não é nobre,

Sua mãe dizia que foi um aborto mal-sucedido de outrora,

Talvez tenha resistido por chacota da sorte.

Vingou no berço imundo da miséria,

Dividindo na enfermaria do berçário,

O sofrimento dos sobreviventes de uma guerra,

Índices de estatísticas com ordem de abecedário.

Sua genitora não é culpada,

Também é vítima da pobreza,

Já teve muitos filhos em diversas empreitadas,

Não queria outro para sentir fome à mesa.

Sozinha para dar conta dos dias carrascos,

Sem o pai dos filhos, um alcoólatra,

Entregue ao vício por fraqueza de encarar o destino nefasto,

Deixando na memória da família, a cólera.

O jovem D. foi batizado,

Sua tutora não entende de driblar a fome,

Mas tem a religião como algo valorizado,

Os filhos terão benção no nome.

Mamãe ficou ainda desempregada,

Sem roupas para lavar,

Desiludida e totalmente desamparada,

Foi com o orgulho ferido, esmolar.

Levou os filhos consigo,

Faz parte da natureza materna,

Conduzir a cria, mesmo em desatinos,

Para tentar comover os outros por lágrimas sinceras.

Não faço ideia de como era minha roupa de bebê,

Com certeza ganhei de alguma pessoa caridosa,

A falta era tanta que nem tive leite de peito para beber,

Me empaturravam com alguma mistura para sobreviver de forma honrosa.

Algo sim me vem à mente de forma clara,

As pessoas se afastando de nós nas ruas,

Feito os leprosos de algum livro que a professora comentara,

Nos afastavam mesmo estando no frio, com as partes nuas.

E logo pegamos a manha de vender qualquer coisa,

Desde as balinhas que agarram nos dentes,

Até cigarros, bananadas, ou roubar alguma carteira frouxa,

Não há moralidade que na pobreza se sustente.

Aprendi o valor de se reciclar,

Aproveitando frutas semi-podres em resto de feira,

Algum salgado que sobrou do bar,

Ou sobras de fast-food que peguei em alguma mesa.

Minha mãe tivera dois abortos com sucesso,

Tenho um irmão morto por desnutrição,

A outra irmã se prostituiu no próprio colégio,

E eu sigo na batalha da vida, resistindo, mesmo sem opção.

Via mamãe cheirando na mesinha da cozinha,

Pelo menos ela ficava um pouco alegre,

A mente alucinada esquece a armagura enquanto se contamina,

Mas quando passa a loucura, tudo entristece.

Com seis anos eu dava boas provadas no álcool,

Ficava bêbado com a molecada,

O mundo parecia estranho e que eu estava em um palco,

Quando o pileque passava eu chorava.

A maconha era comum feito tabaco,

A cocaína era servida pra quem quisesse,

Eu podia não ter muita coisa, mas nasci no reduto do tráfico,

As opções para esse caminho favorecem.

A soma de barracos no morro é desorganizada,

Um caos que é de uma beleza rara,

Arquitetos e engenheiros jamais entenderiam tal parafernália,

É criatividade de quem não teve opção de morada.

A polícia subia no morro e batia sem piedade,

Acho que por tratar todos ali feito pária,

Por isso sempre odiei as fardas, tenho eles como covardes,

Sou um marginal que foi renegado pela própria pátria.

Os traficantes aplicavam sua própria lei,

Condenavam e executavam ali mesmo,

O povo respeitava a única ordem que ali se fez,

Embora sempre tivesse os delatores entocados no meio.

Esperto que sou, em pouco tempo fui pros sinais,

Fazer malabarismo na frente dos carros,

Ganhar trocados e ser ignorado pelos motoristas boçais,

Vez ou outra me vingava e fazia um furto rápido.

Das brincadeiras infantis, a melhor era soltar pipa,

Claro que subi na escala e anunciava os policiais no morro,

Era até divertido e dava uma certa adrenalina,

E quando vejo guarda em minha direção, feito bala eu corro.

Não ia me matar por quem nunca se importou comigo,

Queria as roupas de grifes que meus amigos tinham,

O tráfico era que me fornecia esse porto seguro, um abrigo,

E por isso abracei o crime e como bandido eu me garantia.

Precocemente descobri os prazeres do sexo,

O que não faltava eram boas prostitutas,

Meninas de família também davam mole, por certo,

Mas não respeitam minha irmã, porque eu respeitarei a sua?

De arma na cintura e pó no nariz eu era super-homem,

Depois do crack os motivos ficaram mais vulgares,

Nunca sei quando acendo o charuto, se é a pedra que me consome,

Apenas dou um giro pela cidade e faço roubos em certos lugares.

Outro dia tive que matar um amigo de infância,

Moleque deu mole e estrupou na comunidade,

Pegaram o malandro rapidinho e não tiveram tolerância,

Traficante na hora de torturar é cruel de verdade.

Não me importa que filhinho de papai consuma droga,

Eu ganho meu dinheiro com isso e durmo tranquilo à noite,

Os pais produzem desigualdade que no futuro, o seu filho deteriora,

Defendo meu negócio como se qualquer outro comerciante fosse.

As facções colocam terror nas periferias,

O poder sobe à mente e explode a guerra,

Se soubesse o quanto é prejudicial, a bandidagem se unia,

Organizando para destruir a corrupção que na sociedade prolifera.

Graças ao meu auto-didatismo e auxílio escolar,

Aprendi a ler e não me privo de um bom livro,

Gosto de passar a vista no jornal e me informar,

Sou diferenciado e por isso ainda resisto.

Hoje tenho 15 anos e pareço um adulto velho,

Envelhecemos bem antes do tempo,

Nesse mundo do cão a morte rápida é o caminho por onde inveredo,

Aqui não existe mais horror no sofrimento.

Hoje outro como eu amanheceu morto,

A minha vez logo chegará,

Muitos dirão que já fui tarde, com desgosto,

Sei que outros conseguirão chorar.

As pessoas tem mais o que fazer,

Pra que se importar com a morte de um "neguinho",

Já me consideram infeliz por nascer,

Como se minha condição desde nascente fosse de mendigo.

Lá vem outra lotação de gringos,

Pessoal tira esses estrangeiros de otários,

Mas vem aqui abusar das mulheres, dançam jingles,

E voltam pra seus países nos considerando bárbaros.

Um professor de História que tinha razão,

Ainda fazem de nós suas colônias,

E nos tratam feitos animais em exposição,

Com ar misericordioso de infâmia.

Fogos!! Estão invadindo a área,

Tudo está sendo muito rápido,

Não sei como improvisar uma eficaz tática,

Meu destino será mesmo trágico.

Estou encurralado no barracão,

Sozinho com dez policiais,

Espancado até perder a razão,

Fuzilado sem defesa, rajadas das mais brutais.

O sangue escorre pelo chão de madeira apodrecida,

Os jornais já divulgaram a matéria de capa,

Traficante novato é morto em confronto suicida,

Reagiu e foi contido pelos homens-de-farda.

Essa foi minha curta realidade,

No meu enterro poucos se deram ao trabalho de ir,

Fui o bode expiatório da mais ardil maldade,

O desespero público foi contido, pelo menos, até o momento à seguir...