Um Homem
Nasci em berço não muito esplêndido,
Não pela educação familiar,
Nem pela pátria que me acolheu desde pequenino,
Mas pela miséria que não atende súplica e nem pesar.
Família pobre, mas de moral ilibada,
Tive um pai sisudo, mas de muito afeto,
Era sua forma de demonstrar o sentir, de forma recatada,
Senhor admirável e de sentimentos sinceros.
Papai roçava de forma vigorosa,
Percorria quilômetros com pés descalços,
O sol lhe batia como carrasco nas costas,
Mas seguia sua labuta e ultrapassava os percalços.
Mamãe era um doce de pessoa,
Me fez vir ao mundo dentro de um casebre,
Alguns pensaram que não resistiria, perderia as forças,
Mas sempre foi guerreira, me disse: - Jamais se entregue!
Minha mãe era dona de casa com amor,
A família era seu mais precioso ganha-pão,
Cuidava das tarefas domésticas com fervor,
Também tinha seus momentos de distração.
O solo de nossa casa era de chão batido,
Paredes que pareciam desmanchar quando chovia,
Mas o lar, como dos porquinhos do conto, se mantinha erguido,
E nós ali vivíamos desfrutando uma rara alegria.
Ao nascer chorei até esgotar as forças,
Talvez pelo desespero de ser rebento da miséria,
Embora alguns tenham dito que eu trouxe novas esperanças,
Era muito novo para compreender discussão tão séria.
Sobrevivi ao parto e depois à desnutrição,
Também não estou no mundo à passeio,
Posso vir a perecer, por ócio eu garanto que não,
Aprendi o valor do trabalho desde cedo.
A comida era escassa e cabia bom senso em repartir,
Dormir no chão moía o corpo, melhor ocupar a rede,
As roupas era bem puídas, ao menos tínhamos o que vestir,
A água era barrenta e salobre, mas matava a sede.
Tinha mais seis irmãos como companhia,
Eu era o caçula, fui chamado de José,
O mais velho, Pedro, invejava minhas regalias,
Maria, que era antes de mim, adorava me fazer cafuné.
Ainda tinha o João, Francisco, Mateus e a Ana,
Tradição de pais cristãos em utilizar a bíblia,
Para terem inspiração no batismo e seus filhos nomes de boa monta,
Com isso existia muita repetição de nome, isso me afligia.
Mais do que uma fonte única de nomear rebentos,
O que mais aproximava nossa gente era a pobreza,
A barriga doía de fome em todos com igual provento,
Não adiantava comer barro, o estômago não rendia a essa sutileza.
As brincadeiras dos meninos eram criativas,
Na falta de opções físicas, a imaginação produzia arte,
Pipas improvisadas, piques, cacos de tijolo desenhando amarelinhas,
Existiam os mais ousados que fumavam cigarros de palha no final da tarde.
Muitos começavam a lida na roça bem cedo,
As crianças perdiam a infância de forma precoce,
Em certos lugares nem a autoridade federal põe medo,
E os meninos trabalham feito adultos, poucos tem melhor sorte.
Nunca soube quem organiza o trabalho no campo,
Só vi intermediários que dizem receber ordens,
E nós trabalhadores camponeses somos considerados sub-humanos,
Sei que existe o interesse de alguém, que essa miséria promove.
Muitos aqui rezam, mas garanto que para não perder a fé,
Estão desolados e buscam no além um refúgio,
Outros se entregaram faz tempo, engrossam uma desesperançosa ralé,
Não se empenham em nada que os engrandeça, se consideram estúpidos.
O sexo também aparece cedo na vida dos meninos,
No meio do mato aprendemos sobre a virilidade,
Existem prazeres enormes por baixo de vestidos,
E dores de cabeça com altos índices de natalidade.
Conheci inúmeros que contraíram doenças venéreas,
Temos até informação, mas não chegam aqui métodos cotraceptivos,
Além disso, quem pensa nisso quando está entre um par de pernas,
Logo depois seremos pais e teremos que garantir a subsistência dos filhos.
Tive três irmãos mortos, talvez alguns chamem de destino,
Aninha morreu ao dar à luz, sua filha sobreviveu,
Pedro se acidentou na lavoura, mas todos sabem desse perigo,
João por conta de alguma doença inexplicável, faleceu.
Meu pai morreu de cirrose, dizem que por conta da bebida,
Na época não fomos tão abalados por tal infortúnio,
Pois ele havia se amancebado e fugido de pouco com uma rapariga,
Casos corriqueiros neste lugar esquecido no mundo.
Fui um tremendo privilegiado,
Consegui dar prosseguimento aos estudos,
Um fazendeiro me teve como agregado,
Foi árduo, mas batalhei até o último segundo.
A separação demonstrou o quanto a saudade dói,
Era recompensado pelo otimismo de retornar,
É de sonhos que a vida de um homem se constrói,
Na gana pelas conquistas, que meus projetos consegui alcançar.
Hoje estou em uma casa confortável,
Me recordo da batalha do passado,
Possuo condição financeira estável,
Mas ainda não estou satisfeito com meu atual estado.
Quando fui visitar minha mãe e ofereci ajuda,
Lembro bem dos olhos marejados me fitando,
Estava feliz por meu progresso e lhe contei minhas aventuras,
Mas não era dinheiro o que ela estava precisando.
Naquele instante o abraço fez nossa distância encurtar,
As mães gostam de ter seus filhos consigo,
E quando tive meu filho pude um sentimento próximo desfrutar,
Pena ela não ter os netos conhecido.
Minha esposa Sara, não sofreu a dureza do campo,
Mas nas favelas soube aprender lições similares,
Dividimos mais alegrias do que momentos de pranto,
Nossa união foi erigida sobre os mais solidários pilares.
Meus filhos, Levi e Abraão, não sei por que cargas d’água,
Resolvi seguir aquela antiga escolha de nomes, talvez por tradição,
Angariamos um cão da mais alta estirpe de vira-latas,
Batizamos de Rex, não deixamos lhe faltar carinho, água e ração.
Nos reunimos com familiares nos fins de semana,
Todo aquele povo reunido fazendo festa,
Vez ou outra evocamos remotas lembranças,
Depois voltamos ao dia-a-dia, é o que resta.
Aprendi a dirigir, comprei um carrinho popular,
Quantas conduções lotadas enfrentei,
Agora tenho maior liberdade em me deslocar,
Vez ou outra acaba a gasolina, mas nunca me acidentei.
Tenho um trabalho digno e sou respeitado,
Ajudo a comunidade sempre que posso,
Meus filhos eu educo dentro dos meus modestos passos,
Mas jamais sou severo, deixo seguirem seu curso, não os forço.
Vinte anos de casado, muitas etapas superadas,
Eu e minha esposa ainda somos enamorados,
Nos divertimos conforme a renda que foi contabilizada,
Sou feliz por ter recuperado a simplicidade em viver de bom grado.
As músicas que escuto são resquício da infância,
Aquela canção sertaneja que era típica do roçado,
As roupas eu sofistiquei um pouco com relutância,
Exigências de etiqueta que predominam no trabalho.
Hoje é meu aniversário, estou aqui escrevendo,
Ganhei um diário de um vizinho amigo,
Nunca tive um e agora estou preenchendo,
Tentando repor pela memória o tempo perdido.
Agora vou descer para receber os convidados,
Nada de muito espalhafatoso, apenas uma cervejinha,
Aqueles salgadinhos maravilhosos engordurados,
E o bolo confeitado que minha esposa fez com maestria.
Vou aproveitar estes outros instantes ao máximo,
Sabendo do quanto são efêmeros e logo serão esquecidos,
Vou relatá-los com precisão neste recém-usado diário,
Assim, sempre me incentivarei a novos escritos.
Esqueci de me barbear hoje, agora é tarde,
Estou descendo as escadas do duplex apertado,
Hoje tem mais gente do que esperava de praxe,
Hora de ser o anfitrião para meus aguardados convidados.