Srª. Z.
Ser humano denominado mulher,
Podem sugerir por disposição de gênero,
Alguns evocariam outro motivo qualquer,
Mas a causa é apenas um fato efêmero.
Sabe o que é crescer no machismo,
Servir costumes que lhe degradam,
Certas pessoas dirão que é hábito digno,
Mas no peito que as etiquetas desabam.
A sensibilidade sustendo-a com primor,
Nada de analogias de sexo frágil,
Suas emoções são fortaleza que ninguém alcançou,
Nunca passou pelo que chamam “momento fácil”.
Inspiraria as guerreiras de Atenas,
A beleza confrontaria Vênus, com certeza,
Mas poucos a desvendaram, talvez um amor apenas,
Mantém um ar grave nos olhos, apesar da sutileza.
Se recorda das brincadeiras de infância,
Aquelas diversas formas de bonecas,
Desejando amadurecer em diversas instâncias,
Inspirada pela dignidade materna.
Se enfeitando com trajes que modelam as formas,
Fitando os olhos brilhantes diante do espelho,
As madeixas que caem longas sobre as costas,
O vai-e-vem da pinça para arrancar pelos.
O tom de rivalidade em relação a outras damas,
O toque suave da maquilagem no rosto,
O corte do vestido revelando as ancas,
Trazendo uma sensualidade em seu bojo.
Marcas da inocência perdida,
O primeiro amor magoado,
As cicatrizes necessárias de uma vida,
Percepção daquele vestido amarrotado.
Como é sentir um homem pela primeira vez,
Onde o moralismo ainda impera,
Envergonha-se da sua natural nudez,
Mas logo vem as carícias e isso tudo supera.
As tradições familiares e seus ditames,
Os olhares de esguelha pelas avenidas,
Velando os pensamentos mais infames,
Não se podendo dar ao luxo de ser atrevida.
A lingerie ainda envaidece sua sensualidade,
Menina que brinca com os cães na terra,
No outro extremo revela uma arguta maturidade,
Permite que conheçam pouco de si, o todo, jamais revela.
Suas predileções gastronômicas são exóticas,
Dizem que na gravidez tende a piorar,
No seu caso poderá ocorrer de forma contrária,
Antes ficar na dúvida do que engravidar.
A vida é difícil, mas conceber outro ser é magnífico,
Homem algum soube o que é isso,
Portanto não venham opinar com seu ar jurídico
Sobre aborto e questões femininas, porque abomino.
Foi inspirada por grandes mulheres,
Era uma literata inveterada,
Sofria repreensão e mandavam-na cuidar dos talheres,
Mas sua natureza era determinada.
Chorava sem precisar disfarçar,
Uma das poucas vantagens em seu esterótipo,
Aos homens não é permitido chorar,
Como se todos tivéssemos um sentir protótipo.
Fresca na memóra a valsa de quinze anos,
A curiosidade frente a primeira menstruação,
A morte da avó que lhe fez conhecer o pranto,
As tardes prolongadas do horário de verão.
Aqueles chás-de-panela que eram uma farra,
Os momentos de obrigação religiosa,
Noites prolongadas em agitadas baladas,
Noutro dia resignação perante uma metafísica morta.
O primeiro beijo que gela as mãos,
Aprender a andar de salto alto,
Os poemas lidos e relidos em exaltação,
As novidades de consumo instigando o fausto.
As maçãs da face avermelhadas na paquera,
O temor da repreensão paterna que era severa,
Mas sua paciência era grande deveras,
Sem contar o afago do cônjuge de intenção sincera.
Quando nasceu a primeira e única filha,
Alegria imensa que reprimiu a dor do parto,
Seu nome era W., completou a família,
Sentia a existência completa de fato.
E o terror quando vi meu pai chorando,
Não sabia que pais choravam,
Fiquei atemorizada e fui tomada de espanto,
Meu respeito e subserviência continuavam.
Não desejava ser como minha mãe era,
Quanto mais tentava me afastar dos hábitos,
Estava ainda mais próxima das atitudes dela,
Talvez seja uma herança de um carma trágico.
Meus seios ficam esbeltos no decote,
O sutiã os valoriza, mas odeio usá-lo,
Homens olham pra eles como se eu fosse um recorte,
Agora dou-os a minha filha, para sugá-los.
As formas das beldades estéticas,
Jamais me cativaram,
Sempre em relação a beleza, fui cética,
A que valorizo, interna, não captam.
Olham para meu corpo, mas Z. não é só casca,
Um homem desvendou meu mistério,
Amei só este, mas a vida comigo foi madrasta,
Sucumbiu a um acidente, agora vivo de pretérito.
Chorei tanto que perdi o fôlego,
Em meu peito abriu um abismo, quase tive um ataque,
Mas arrefeceu aquele desvario sôfrego,
Hoje nem consigo levar flores à sua lápide.
Roí as unhas sem motivo algum,
Agora que os tenho não mais faço,
Preservo as lembranças em fotografias de um álbum,
Minha mente no presente, a isso não permite espaço.
Jamais serei um nome a ser lembrado,
Sou mais um entre tantos ao longo do tempo,
Na certeza de ter sido, que me faço,
Compondo o que há sem glórias, mas fundamental ao desenvolvimento.
Preocupada em quantos virão ao meu enterro,
Será que isso importa ao morto, duvido,
São especulações de vivos por puro receio,
Aos que morrem nada mais importa, nem mesmo os vivos.
Sou uma mulher, brasileira, simples,
Julguem-me e reflitam sobre a natureza humana,
Nossos atos de tão similares não se admitem,
Mas desabafo por um desespero que clama.
Este é meu diário, últimas linhas,
Escritas no dia seis de março de dois mil e dez,
Idosa com a cútis enrugadinha,
Feminina mais do que nunca, da cabeça aos pés.
Deixo de escrever por vontade própria,
Leiam-me nestas páginas enquanto ainda vivo,
Não pretendo ser lembrada póstuma,
Quero ser neste instante um verdadeiro motivo.
Tenho lucidez para suportar o que sou,
Reconhecimento para me alegrar com o que são,
Forças para experienciar o que me restou,
Sentimentos para quem desejar estes ombros murchos como consolação.
Passei pelos estágios, avó, mãe, esposa, amante, filha,
Completa pela felicidade em viver cada etapa,
Nunca me arrependi do que vivi, em vivência sou perita,
A todos que compartilharam cada instante comigo, lhes sou grata.