Só paredes e lados
Já não ouço a buzina da vida.
O riso e gargalhadas das crianças,
As vozes que gostaria de sentir o som.
O telefone não toca e isso coalha tristeza.
A introspecção é melancólica
E o silêncio me choca.
Aqui, onde estou, só me resta servir migalhas aos passarinhos,
mas não as migalhas que me compõem.
Hoje, só paredes e lados
O vazio ocupa o espaço e os pés ocupam as incertezas.
Com a idade avançada perdemos 50 mil células cerebrais por dia.
O paladar fica degradado e a digestão mais difícil.
Esquecemos nomes, datas, títulos de livros e filmes.
A corrosão diária nos é mostrada inclementemente,
Enquanto afundamos na areia movediça dos anos
Vamos perdendo quase tudo o que já tivemos.
Mas, de tudo o que perdemos o pior é a incompreensão
E a intolerância das pessoas que nos cercam.
Veem o que devem ver, mas não se importam com o amor e a solidariedade.
Por isso, leio pulsões e sentimentos, para poder escrever.
Pois a leitura e a escrita são irmãs siamesas.
Quando o amor cria raízes que se entrelaçam
Devemos cuidar para que tempestades não desmanchem os laços.
No início, quando tudo é retumbante,
O amor mostra a sua inundação de afetos
E explode com graça alegórica e espetacular.
Depois, não sabemos sequer trocar as fraldas das tolices.
Os olhos que deviam afastar a feiura dolorida
Nos deixam desesperançados e tristes.
Nos tornamos distantes e sem completude.
Poucas vezes ela me viu como realmente sou:
Homem de caráter, contemplativo e certo de que Deus existe.
Tudo ficou invisível nas dobras das lembranças.
O que passou em nossos dias claros virou noite escura.
E a presença da vida foi se tornando ausência.
Hoje, meus sapatos encharcados pisam os meus sonhos e me levam à porta dos fundos.
Sigo o beco sem saída e fico aí na despedida, resmungando distância.
Encontro o relento, torno-me confuso, enquanto o orvalho molha o inútil.
A boca exala tédio, a vida sem remédio e o lábio triste sequer existe.
Os dentes mastigam dores.
A crença anuncia distância, horas vazias e falsas melodias.
Doei sapatos sigilosos para proteger seus passos.
Minhas mãos regaram suas raízes de fogoso viço e as coloridas paredes do coração aberto.
Vivemos os dons sagrados da natureza e seus olhos anunciavam sementes.
Seus braços afastavam as sombras e seu sangue era terra viva e florescida.
Seus beijos percorriam o corpo e seu hálito penetrava as veias.
Tudo foi levado no bico de aves cegas que não sabem para onde voam.
Agora, fico no Mosqueiro, em exílio espontâneo, esperando que os desenganos não se perpetuem.
Enquanto isso, escrevo garatujas em papel roto.
Quem está pronto para amar
Está pronto para morrer.