Um Gato Miando

Que saudade de você,

Sentado em frente a janela,

Queria ao menos te ver,

A chuva cai e escorre pelas frestas.

Estou ouvindo um miado,

Ao longe o som do bichano,

Podia ser sua voz em eco simulado,

Mas é outra melancolia, não me engano.

A chuva que escorre cora por mim,

Poupa-me lágrimas em vão,

Seria desperdiçar choro se fosse por ti?

Acredito que nesse caso, não.

O gato ou gata, não sei o sexo,

Esse miado parece entristecido,

Talvez esteja num outro tédio,

Compartilhando o tempo umedecido.

Estalos os dedos por enfado,

Folheio um romance,

Sem empolgação me desfaço,

Estou num doloroso transe.

Ligo a tv e o dedo repete o gesto,

Desligando esse aparelho sem novidade,

A programação que passa eu detesto,

Queria dar uma volta pela chuvosa cidade.

Mas estou desanimado,

Me guardar com guarda-chuva,

Pego um cobertor no armário,

Me enrolo e ouço música.

A rádio reflete o tempo,

Canções depressivas,

Por um instante lamento,

Levanto e busco uma bebida.

Meio copo de vodka barata,

Acendo um cigarro de filtro amarelo,

O apartamento repleto de fumaça,

Meu olhar vazio fitando o mofo no teto.

E esse gato miando,

Será que está se molhando?

Já está me incomodando,

Por que não sossega o bichano?

Vozes no andar de cima,

Pelo tom é discussão,

Todo dia ali sai uma briga,

Gente de pouca moderação.

Mais meio copo e num só trago,

Absorvo o líquido que arde,

Pelo canto da boca eu babo,

No vidro o reflexo é de um traste.

Hoje é quinta, com cara de domingo,

A cidade parece estar mais lenta,

Talvez eu a veja assim por fatídicos motivos,

O clima torna as faces mais sombrias, densas.

Dou três passos e paro,

Volto em direção a poltrona,

Estou um pouco pálido,

Sinto uma interna vergonha.

A campainha toca impaciente,

No olho mágico percebo,

Não é quem desejava, certamente,

Atendo e despacho o sujeito.

Agora sinto vontade de ler,

Abro o romance de novo,

Não consigo me entreter,

Fecho o livro com certo nojo.

Se estivesse comigo,

A beijaria com hálito de bebida,

Estou ficando deprimido,

Entorpecer se tonra a única garantia.

Tomo uma distância no cômodo,

Venho galopante ao encontro da janela,

A vidraça se quebra e faz estrondo,

O corpo se choca na pequena passarela.

Gritos e pessoas amontoando em volta,

O sangue escorre pela fronte aberta,

Crianças que acabavam de sair da escola,

Vão verificar a novidade indigesta.

Figura de bermuda, sem camisa,

O cobertor se desprendeu ao cair,

Pousando ao lado de forma distinta,

Moradores das nelas iam conferir.

No jornal a polícia dizia investigar as causas,

Um vizinho disse ser pessoa de hábitos estranhos,

Certa senhora foi tachativa, "isso é amor em falta",

Estatísticas relataram sem causar muito espanto.

Como ninguém reclamou o corpo,

Foi enterrado como indigente moderado,

Recebia pequeno ordenado, nada gordo,

Serviços autônomos, bicos como eram chamados.

Alguns clientes foram ao cemitério,

Acharam triste não ter ninguém,

Foi cerimônia rápida, sem lero lero,

Na casa não acharam um vintém.

Os poucos objetos foram doados,

O apartamento alugado,

Sem saber do ocorrido o novo proprietário,

O cidadão morto não foi mais lembrado.

Meses depois o morador do andar de cima,

Dizia a sua esposa que achava estranho,

Perguntando se recordava de um gato que ouvia,

Com um melancólico miado que lhe parecia estranho?

A esposa nunca reparou nesse fato,

O marido achando que era por desconsideração,

Iniciou outra briga com palavrões reverberando abaixo,

Tudo seguindo o ritmo conforme manda a tradição.