Desertos

Andando , seguindo com passos largos,

Talvez curtos demais para percebê-los,

Pude perceber o fenômeno do lapso,

Manifesto sem que pudesse prevê-lo.

Olhava ao derredor e não via nada,

Ainda assim consentia o momento,

Não por quimeras de abstrações vagas,

Apenas por dores que enervam o sentimento.

Observando todo o vazio compreendo,

Desertos cada vez mais abrangentes,

Sem homens/mulheres para preenchê-los,

Ficando o sentido da falta entrementes.

Comemoro bodas da consumação niilista,

Arrancando suspiros de hiatos,

Tão pequeno que me comparo a uma molécula de formiga,

Pra que sentido, se o fim é fato?

Uma metafísica não me tranquiliza,

Alarga o abismo que me engole,

Onde os ecos se produzirão por anomia,

E serei resultado de uma nefasta prole.

Beijarei a face sensível do acaso,

Como se compreendesse a sorte,

Copulando nos mais diversos regatos,

Que pululam nos campos vastos de morte.

Invocarei os quatro elementos,

Pela singela noção de rito,

Não por crer em divinos sentidos,

Mas pelo resgate de um direito natural esquecido.

Fomentando nas planícies estéreis,

A continuidade de sua improdutividade,

Ejaculando com extrema potência os diversos projéteis,

Que irão alcançar para fecundar distâncias incomensuráveis.

O deserto que vejo não poderia ser,

Se existisse uma presença sequer humana,

Abstenho-me de minha própria condição de ser,

Para contemplar o nada que me acompanha.

Abstraído não passo de uma possibilidade,

Vaga demais, a ponto de diluir-se,

Se pudesse compreender com acuidade,

Perceberia que até mesmo o Nada progride.

Cético em relação a cada ato percebido,

Cego diante da visão que emana dos olhos,

Tateando as sombras de um mar sombrio e ressequido,

Afundando em movediças lavas que consomem da alma aos ossos.

Desafortunado que chora sem verter uma gota sequer do sulco lacrimal,

Repleto de vermes que consomem sua carne a cada instante,

Fazendo-a regenerar com mais vigor substancial,

Reacendendo em seu calvário, como um Prometeu coadjuvante.

Pareço uma piada fúnebre de uma tragédia mal contada,

Sem destino que possa conduzir às graças de Loki,

Um coringa de uma partida em que foi carta descartada,

Sem o consolo de um par que sirva como consorte.

Violando o sentido por apostasia,

Vivendo de restos de algo que nem mesmo existe,

Uma ausência que vaga de forma vadia,

Repetido em breves momentos como inoportuno chiste.

Vômito expulso da fossa mais insalubre,

Abandonado como dejeto excretado da forma mais vil,

Solitário por ter adquirido o costume,

De demonstrar apenas um fragmento aterrorizante de seu ácido perfil.

Alguns momentos até sinto fome,

Mas não posso saciá-la com apetitosos pomos,

A matéria meu organismo não mais consome,

Me tornei devorador de sonhos.

Já a sede tornou-se libidinosa,

Cada vez que absorvo para supri-la,

Meus sentidos, o êxtase deteriora,

E o gozo pedindo mais e mais, me remete à vigília.

Meu estado de inquietação é incalculável,

Mefistofélicamente sigo este dilema,

Se o tormento que percebo é inquebrantável,

Devo entregar-me ou romper como Fausto, diluindo o estratagema?

O deserto está em mim,

Este o motivo de não me desvencilhar dele,

Sem possibilidade alguma de dirimir,

Destruo-me sem restar outra forma de proceder.

Por este motivo o riso das hienas eu compreendo,

É desesperador o espetáculo da vida,

O homem como lobo do homem vai sua natureza corroendo,

Enquanto a realidade prossegue como Caronte, seguindo sua travessia.