E


U E O ESPELHO
 
 
 
                              Passaram-se os dias, os meses e os anos. Entretido com os meus compromissos e coisas que eu julgava importante, ás vezes nem tanto, eu nem vi o tempo passar. Tudo acontecia e seguia o seu curso naturalmente.
                              O meu mundo tornou-se restrito e de certa forma bastante mesquinho. Eu já não via, ou se via não enxergava mais nada ao meu redor. 
                              Quando eu não estava sentado em frente ao computador embrenhado num mundo de papéis e documentos, estava cutucando alguma coisa no quintal minúsculo instalado na área de serviço do apartamento.
                              Os contatos com os meus amigos e uma grande parte dos entes queridos acabaram ficando também restrito á um “oi”, “olá”, “tudo legal?”, “to na boa”, “valeu”, “sem crise”, “bye, bye” e outras palavras tolas americanizadas.
                              Ah! Eu me sentia um jovem vigoroso, bonito e forte. Estava tudo no lugar e certo comigo. As belas meninas virtualmente me elogiavam. Sentia-me um rei diante de tantas bajulações. É... Mas o tempo e o desgaste físico são implacáveis.
                              Lá pelas tantas, num belo dia eu resolvi que daria um passeio pela cidade. Pretendia visitar o Parque do Ibirapuera, o Jardim Botânico, almoçar num restaurante diferente desses rodízios aonde os vários tipos de carnes vão rodando mesa-a-mesa.
                              Para tanto, animadíssimo, fui ao banheiro fazer a higiene necessária, inclusive cortar a barba, coisa que há muito não fazia. Eita momento triste foi esse. Ah! Ah! Ah! Ah! Não gostei do que vi.
                              De frente para o espelho olhei bem, cocei os olhos, esfreguei-os, lavei e voltei a olhar e sozinho dei um grito: Quem é esse cara? Quem sou eu afinal? Não. Isto que está no espelho não sou eu. Impossível. Eu sou jovem e bonito.
                              Como eu tinha objetivo e muito caráter resolvi não só aparar a barba, mas cortar tudo e limpar o rosto. Talvez isso melhorasse a minha aparência até ali irreconhecível.
                              Qual não foi a minha surpresa ao terminar de raspar e escanhoar um último fio do rosto noite uma realidade que até então não tinha me dado conta. Fisicamente envelheci de verdade. Não. Eu não era mais aquele jovem bonito, vigoroso e forte de outrora. As rugas estavam ali expostas sem que nada eu pudesse fazer.
                              Comecei então intimamente, sem nenhum suporte convincente questionar a qualidade daquele espelho. Ele estava muito velho com muitas manchas que o impediam de refletir com clareza. Por isso de forma precária, mas decisiva, me arrumei o melhor que eu pude e saí para a rua.
                              No percurso que era de certa forma curto e que fazia a pé notei que ninguém me cumprimentou. Cheguei ao saguão de um shopping e quando passei em frente a um espelho gigante noite à presença de um ancião parecido comigo. Fitei-o de alto a baixo várias vezes.
                              Não, não, não. Nada estava errado com o meu espelho. O espelho do shopping é novo e está limpo, refletindo tudo e toda a realidade. O ancião ali refletido era eu mesmo.
                              Ah! Esses espelhos...