Era ontem
Ontem era o dia de realizar muitas coisas
Que eu há muito tempo vinha sonhando,
Parar de sonhar, por exemplo,
Ontem era o dia de parar de sonhar,
Era o dia de esquecer, esquecer tudo
E começar a partir das lembranças
Do que foi vivido ontem
A ter novas e diferentes criações mentais
Sem nada daquilo que até ontem
Me ocupava o pensamento,
Sabe?
Assim meio amargo,
Essa tristeza em tudo que olho,
Certa desesperança em tudo que começo,
Com um acordar já cansado
Meio que arrependido de ter acordado...
É como se dormindo nada existisse,
Mas não é verdade,
Deus sabe pelos infernos que ando
Quando meu velho, muito velho,
Velho já demais, ultrapassado
Cheio de comorbidade,
Meu velho corpo,
Corpo que já nasceu muito, muito velho e cansado de tudo,
Quando ele dorme
Deus sabe os infernos por onde ando
Dentro dos sonhos,
Que parecem eternos,
Verdadeiras vidas inteiras
Vividas enquanto o corpo dorme,
Às vezes, por um segundo...
Mas também Deus sabe
Os infernos que ando, acordado
Indo e vindo entre essas pessoas boas
Dessa cidade pequena...
Era ontem o tempo para parar com isso tudo,
Essa coisa de querer ser poeta,
De não me achar em nada,
Nem em mim mesmo,
Afinal, estou eu em mim mesmo?
É muito corajoso quem diz isso,
Eu não estou em lugar nenhum...
Mas era ontem que eu tinha marcado
Para parar com essas coisas,
Um tempo novo,
Uma nova forma de ver as coisas,
Sabe?
Era ontem que eu ia esquecer
Todas as mulheres que beijei
Aquelas que amei sem querer ninguém soubesse,
A primeira a quem me declarei,
Era ontem...
Mas não foi,
Empacotei o até ontem
E pus no saco aberto
Que contém o anteontem
E no de ontem pus o dia de hoje
Com todos os seus objetivos e sonhos
E também dores,
Sabe,
Viver dói,
Não apenas perigoso,
E como ontem, hoje eu também tinha muita coisa pra apagar de mim
Do que sou
Do que me fizeram
Do que eu fiz do que me fizeram,
Essas filosofias
Tão urdidas pela mente humana,
Nada disso me basta, ou bastou,
Até ontem sim,
Mas agora jazem
No pacote aberto do anteontem
E no anteontem do anteontem está também o paciente amorfalhado pelos que vieram depois
Pacotes dentro de pacotes
Milhões deles tapando a boca dos que vieram antes,
Com coisas vividas e sonhadas
Com coisas enlouquecidas,
Porque a loucura é uma vertente da vida
E o mais louco é aquele que nunca enlouqueceu,
Pois bem,
Era ontem,
Tudo era ontem,
Tudo por fazer
Um recomeçar
Mas quem disse que há recomeçar?
Não há
Eu as vezes me pego pensando
No que tem no primeiro de meus pacotes
E isso também é -me,
Esse pensar sem eira nem beira
Também estão em todos os pacotes
Eu sou um conjunto de pacotes
De pacotes,
E dentro de casa pacote há um eu
Que pensa de lá para cá em mim
Como se fosse um abandonado,
E me crítica me questiona
E conversamos,
As vezes todos de só vez
Uma multidão de multidões
Dê um mesmo eu
Tão antigos,
Tão novos,
Sim,
Porque dentro desses pacotes
Que era ontem o ter finalizados
Vão também minhas projeções no futuro,
Que conversam comigo o tempo todo,
Algumas me chamam,
Outras dizem pra eu parar,
Que não me aproxime...
E assim, ontem eu pus no pacote de anteontem
Muitos dos eus que ainda vão existir,
Os de amanhã, por exemplo,
Estão já lá dentro,
E os documentos ano que vem também...
Sabe? O bom mesmo é ser sozinho,
Mas isso me parece impossível
Pois sendo muitos
Me sou cada vez menos,
Rarefeito entrar ser e estar
Entre o que foi e o que seria...
Mas hoje eu não queria mas pensar nessas coisas
Ontem, era ontem o dia de elas ficarem
E eu as pus no pacote
A questão é,
E não é segredo isso
É que não é possível fechar nenhum desses pacotes
E de lá vem tudo de ontem
Tudo de anteontem
De anteanteontem...
Não sei, não sei se vivo ou passo...
Eu vou terminar com tudo isso,
Amanhã,
Eu juro,
Amanhã
Amanhã eu não vou mais lembrar de mim....
Mas isso era ontem...