Ninguém merece tanto esquecimento...

O monstro não sabe passar um dia

Sem que quebre algo, uma amizade,

Um amor, seja o que for,

Algo tem que ser para sempre despedaçado...

O mostro de cabelos e barbas crescidos

Tantos espelhos há quebrado,

Não há nada mais insuportável para o mostro

Que a imagem que se reflete

Diante dele... Por isso ele despedaça os espelhos

Deixa-os em pó, de modo que nenhuma parte sua

Sua seja refletida... Mas não tem jeito,

A luz do sol, algo sempre se mostra a ele,

E ele corre enlouquecido a fugir do que lhe

Mostra o espelho, agora múltiplo,

Como a multiplicar sua monstruosidade...

Ele não anda próximo a rios ou córregos,

Tem horror de lagoas ou açudes,

Não quer ver o mar, nem nada que possa

Mostrar aquilo que ele ver do outro lado...

Mas há uma época em que ele não pode fugir,

O monstro sem casa nem destino,

Sem amigos nem amores,

O mostro, transeunte eterno nessa vida,

É extremamente atormentado na época das chuvas,

Quem dera fosse cego!

Mas não, os caminhos que segue,

Mesmo sem um destino certo,

Por essa época se encontram cheios de possas,

Principalmente nessa cidade em que as ruas

São esquecidas, e pequenas possas refletoras se fazem

Aos montes... O monstro não tem saída,

A ver por onde pisa, querendo ou não,

Certa hora vai deparar-se com a imagem

Que se mostra a ele...

Uma imagem de cabelos esvoaçados,

Uma barba comprida, embaraçada, suja e grisalha...

Há quanto tempo, meu Deus, há quanto tempo

Esse ser assim anda, cheio de esquecimento,

De modo a não lembrar quem é,

O que é, nem de onde veio, nem para aonde vai...

O monstro não tem caminho,

Todos os caminhos são para ele caminhos

Propícios e destinados...

Um dia cansado, longe de tudo e de todos,

Ele sentou-se a beira de uma estrada,

As pessoas o tinha como mendigo,

E era natural já sua presença,

De modo que já não o percebiam...

Se ele gritasse, ninguém se importava,

Se ele chorasse, tudo era normal,

Se ele de repente começasse a puxar os cabelos

De olhos revoltos, isso não era de espanta a ninguém...

Sim, sentando a beira do caminho,

Cansado, pois não dormia, desmaiava...

Certa vez, quando o estava dominava seu corpo,

Enquanto seus olhos se fechavam,

Ele viu numa possa próxima,

Num terreno baldio, ao coaxar dos sapos

E outros pequenos bichos,

A imagem de quem tanto fugia...

Naquele momento, tendo talvez um átimo

De lucidez, ele se aproximou mais daquela imagem,

Era tão grande seu cansaço,

Era tão grande seu desatino,

Que por um momento,

Sem que fizesse gesto algum,

Viu a imagem se mexer de forma independente...

E isso, invés de asssustá-lo

Chamou mais sua atenção,

Ele se concentrou na imagem,

Como Narciso, ele mirou a possa de lama,

E não sabia mais o que era real ou não

De modo que aquela imagem foi mudando,

Ficando mais jovem,

Os cabelos como no reverso do crescimento,

Foram diminuindo, a barba sumindo,

As rugas desaparecendo...

Sim, ele reconhecia aquilo,

Era ele, não no agora, mas noutro tempo,

Noutro eu, com outro coração e sonhos...

Era ele, sim, era... E ele não teve medo

Quando a imagem saiu da possa,

Jovem e pura a lhe pegar na mão,

A sentar-se de seu lado,

E, com uma perna lhe dar apoio para a cabeçorra

De rosto queimado de sol e pele animalesca...

Era um gesto de carinho que estava acontecendo,

Mas ele não entendia,

No entanto aceitava,

Sentiu-se calmo como nunca,

E seu coração estava tranqüilo...

O que saiu da fossa disse:

Ânimo você não é que ver,

Os olhos enganam freqüentemente,

Você está dentro de você,

E só você pode se refletir,

Nenhum espelho, ou igual, pode dizer a ti,

Refletindo-o, quem és.

Eu estou aqui, vês? Reconhece-me,

Sou aquele jovem que foste,

E que ainda mora dentro do teu coração.

Se te esqueceram, eu não!

Animo, o desalento é nossa morada,

E amanhã, se houver o amanhã,

Estarás mais puro que a mais pura das substancias,

Trago-te apoio, sei que não dormes há muito,

Durma minha eterna criança,

O mundo te foi cruel, eu sei,

Mas, eis-me aqui para te guiar por

Novos caminhos...

No outro dia, ninguém percebeu que a noite foi

Mais silenciosa, que os gritos rotineiros haviam cessado,

As pessoas dormem pesadamente,

E se alguém pede por socorro,

O sono é profundo demais para se alterar...

Foi assim como o monstro,

Na fossa em que pela primeira vez lembrou-se,

Na fossa que lhe revelou tal qual era na essência,

Foi encontrado depois de alguns dias,

E dizem que estava limpo como nunca,

E dizem que sua face suplantava qualquer felicidade...

Alguém chegou a dizer,

Vieram buscá-lo, ninguém merece tanto esquecimento...

Alguém perguntou,

Vieram? Quem?

Mas quem havia falado

Também não estava mais ali...

Sebastião Alves da Silva
Enviado por Sebastião Alves da Silva em 05/11/2007
Reeditado em 05/11/2007
Código do texto: T723825
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