Ser de Argila

Sinto o corpo argiloso,

Composto dessa substância,

Não cristalizado e nem aquoso,

Um novo ser a cada mudança.

A secura me faz rígido,

Ressecado e pedregoso,

Um falo no meio erigido,

Afrontando o deus mais poderoso.

Logo sou molhado,

Enlameço feito brejo,

Em outro corpo grudado,

Gosmento em excesso.

Volta o sol a estalar,

Caio em grãos, sou poeira,

Pó de terra a bailar,

Nuvem desértica grosseira.

A água dá nova liga,

O falo dissolvido se agrupa,

Do lodo abre no meio uma vagina,

Escorrendo aberta abaixo da cintura.

Do peito tombam seios flácidos,

Lamacentos feito muxibas,

Vão caindo até o solo desgraçado,

Se juntando a matéria reunida.

O umbigo aberto feito boca,

Cospe fluído arenoso,

Saindo pelas costas da pessoa,

Feito um ânus presunçoso.

Mutilado em pedaços,

Decepado por força externa,

Argila repartida em espaços,

Membros de um corpo que regenera.

Feito uma lagartixa a remembrar-se,

Se ligando às partes esquartejadas,

Um espantalho Proteus, de diversas faces,

Pronto a aterrorizar as almas desavisadas.

Esculpido ganha formas variadas,

Arte de tato forte a modelar,

Podendo ser um totem de almas mistificadas,

Entupir esgotos por onde se fez escoar.

Entre estados físicos distintos,

Tenta fugir da solidez que conserva,

Como da liquidez que o faz finito,

Escravo que tenta fugir da realidade que o encarcera.

O que engole logo regurgita,

Faz sair por poros imensos que se abrem,

Vira o alimento do que antes consumia,

Poucos são os que assim interagem.

Membros novo surgem,

Um polvo com tentáculos bizarros,

Engana os outros e se auto-ilude,

Representando um grotesco teatro.

Se torna sua própria sombra viva,

Mesclando-se em uma amálgama cancerígena,

Metastasiando em uma simbiose doentia,

Se fazendo múltiplo ainda que uno por certa serventia.

Seus órgãos mudam de lugar,

Organização caótica,

Não se apega a um fixar,

Maravilha a mais requintada ótica.

Num instante é Khepra, o escaravelho,

Em seguida as fezes que ele empurra,

Sempre sendo outro apesar de ser o mesmo,

Parece ter uma natureza que desestrutura.

O homem de barro, aquele Adão bíblico,

Demonstrar esse caráter fluídico,

Mais do que retornar ao pó do princípio,

Pode variar além da imposição do divino.

É da sua maleabilidade que fez outro em si,

Emergindo uma Eva de uma essência mais aquosa,

Unindo-se em um argiloso ato de reproduzir,

Criando uma espécie artesanalmente talentosa.

Somos telúricos por excelência,

Num ato de amor a Gaia,

O mundo e nós em uma única ciência,

Uma mistura rica e apaixonada.