Perdendo a Boca

Estava diante do espelho,

Manhã ensolarada,

Algo me causou súbito medo,

A boca fechando naquela hora.

Não era um simples encostar de lábios,

A pele parecia se entrelaçar,

Começava a sumir o que estava do outra lado,

A língua eu pouco pude vislumbrar.

Corri em direção ao armário,

Me armei com escova de dentes,

Vi que era algo pouco prático,

Corri pra mesa em busca de talheres consistentes.

Tentando adentrar algum alimento,

Mas já me encontrava selado,

O som não era emitido de dentro,

Talvez tivesse engolido tudo no ato.

Impossível sentir o que outrora havia,

A cavidade bucal e seus apêndices se perderam,

Olhava pra aquele rosto, inclusive sem narinas,

Motivos orgânicos incógnitos me prenderam.

Eu acho que respirava pelos poros,

Já que nos dutos convencionais,

Era impossível absorver ou expelir corpos,

Vedado mesmo com apelos emocionais.

Chorei com lágrimas escorrendo até o queixo,

Pingavam sem que pudesse prová-las,

Espirrar era algo impossível de qualquer jeito,

Se pudesse gritaria, mas simplesmente não dava.

Pensei em telefonar para um amigo,

Como me fazer ouvir sem fala?

No desespero pensei na internet como abrigo,

Mas como iria relatar tal desgraça?

Queria correr por braços da minha amante,

Só que nesse momento preciso de sua boca,

Mas não poderei beija-la de forma apaixonante,

Castrado mudo numa realidade louca.

Existem surdos e mudos no mundo,

Posso me virar com essa falta de comunicação,

Mas para comer preciso de um novo recurso,

Será que meu cu agora vai servir para absorção?

No desespero temos pensamentos insanos,

O cu foi feito pra saída, mas minha boca em tese era entrada,

Agora que foi impedida, posso ter outros órgãos em pânico,

Organismo caótico que não segue a lógica pré-formada.

A sensação é muito esquisita,

Faltam os dentes, língua, todo o resto,

Mas parece que ainda resta faringe, amídalas,

Acho que a mente tenta me iludir nesse inferno.

Nada de gosto,

Talvez o paladar do vazio,

Esse nada insoso,

Sou doente, mas me sinto sadio.

Me morderia num ataque,

Mas faltam mordeduras,

O que morde é o desastre,

De não poder me cravar dentaduras.

Nem debochar me é facultado,

A língua que não posso expor em cinismo,

A não mais me pronunciar estou fadado,

Foi usurpada uma considerável porção do meu humanismo.

Ainda consigo escutar,

Deito no chão molhado,

Vou tentar assim sugar,

Matar a sede com o corpo ensopado.

Péssima idéia tentar usar os tímpanos,

Continuam tendo exclusive utilidade,

De quebra obtive dor de ouvido,

Aumenta meu delírio de perplexidade.

Seguro uma faca,

Penso em rasgar a pele,

Vou abrir uma vala,

Uma nova boca me serve.

Rasgo e a dor é alucinante,

Escorre sangue em fios grossos,

Abrindo de um lado e do outro é cicatrizante,

Fechou-se o rasgo sem grandes esforços.

Enterro a lâmina afiada,

Nem um grunhido,

A faca é expelida, arremessada,

Continuo comprimido.

Troquei de roupa e fui pra rua,

Chegando na calçada,

O espetáculo da bizarrice pura,

Todos com as bocas fechadas.

Os olhares de terror encontravam-se,

Com outros olhares de terror ainda mais abatidos,

Uma epidemia que todos presenciavam,

Até cães malucos corriam até caírem desfalecidos.

Se as plantas tivessem boca,

Acredito que estariam lacradas,

Podem ter outra censura que sofram,

Não percebi nada nessas privilegiadas.

Se até nas escrituras falam do verbo divino,

O que demonstra a natureza de deus não ser vegetal,

Ou esse verbo possa ter mais amplos sentidos,

Me considero mais do que nunca um não-deus, sujeito material.

Usarei outras linguagens,

Alimentos modificados,

Minha estética muda a roupagem,

Ainda sinto que isso é ingrato.

Não pude escolher,

Presenciei o resultado,

Fechando até desaparecer,

Condenado sem ser julgado.

No meio da multidão desbocada,

Tomo uma medida extrema,

Pulo do alto de minha sacada,

Arrebento no solo fazendo risada sanguinolenta.