Sem Dentes
Nada de dentes na boca.
Saliva que escorrega,
As gengivas parecem soltas,
Me sinto com natureza velha.
Isso não provém de larga idade,
Os dentes apenas caíram.
Talvez tenha nascido com tal deformidade,
Nunca existiram.
Jamais soube o que é mastigar,
Triturar alimentos como feras,
Ruminante feito herbívoro saborear,
Só líquido que pra dentro escorrega.
A língua parece solta,
Um outro ser que perscruta a cavidade bocal,
Impossível prender algo com força,
Se for líquido absorvo de modo trivial.
Chupo, sugo, lambo,
Cerro os lábios,
Fechar nem tanto,
Friso ingrato.
Morde nem em força de expressão,
Babo o que toco com espessa saliva,
Arrancar pedaços só algo de leve absorção,
Amolecendo até a coisa se tornar menos rígida.
Uma falência a ortodontistas,
Embora tenha outros atrativos,
Inclusive ósseos debaixo da gengiva,
Buraco repleto de incentivos.
Beijo com estampa de ventosa,
Molhado ao extremo,
Engolindo em sucção pavorosa,
Escorre o cuspe nojento.
Rejeito próteses,
Odeio artifícios,
Liso por hipótese,
Livre de mordicídios.
Chupo um sorvete todo,
Despedaçar de uma vez não consigo,
Prazer de provar aos poucos,
Sem dentes doendo por causa do frio.
Comida não ficam presas,
Nadam no escarro,
Um bocejo dá sensação fresca,
Bebo num delicioso trago.
As aftas proliferam,
Pequenas ilhas purulentas,
Maus hálitos manifestam,
Descamo em porções pequenas.
Sinto gosto de sangue,
Ferruginoso paladar,
Passo a língua até que estanque,
Lambendo pra cicatrizar.
O quente é terrível,
Arde com selvageria,
Passando desprezível,
Avermelhando galerias.
Morto sem arcada dentária,
Usarão outras formas de reconhecimento,
Meu sorriso é de lacuna sombreada,
Buraco aperto expondo carnes em movimento.
Cavalo dado que não enxergam os dentes,
Escravo sem valor de mercado,
Marketing negativo de pasta de dentes,
Nunca terá um siso para ser arrancado.
Na falta de caninos para afrontar,
Uso o abismo da fala que escapa,
Lábios moles sem dentição para adornar,
Tremulando ao dizer uma palavra.
Com raiva não tenho o que mostrar,
Então deixo tortas as sobrancelhas.
Preciso contrair a face para amedrontar,
Me viro sempre de alguma maneira.
Assovio elegantemente,
O vácuo impera,
O vento dança suavemente,
Gotículas saem às pressas.
Bocejo alto,
Jamais tive bruxismo,
Durmo sem sobressalto,
Ronco um pouquinho.
Considerado ancião desde cedo,
Pela estética desdentada,
O desconhecido causa medo,
A gengivite é minha madrasta.
Mas o tártaro passa longe,
Sorriso amarelo desconheço,
Cáries só conheço de nome,
Uso para escovar os dedos.
Dizem com malícia,
Que sou próprio pra oral em falo,
A falta de dentes não prejudicaria,
O estranho causa humor sarcástico.
Um banguela completo,
Considerado deficiente,
Como se existisse um certo,
Padrões de estética vigente.
Sou como o bebê que nasce,
O idoso que chega ao fim da vida,
Quem perdeu os dentes por desastre,
Ou por má higiene que prejudica.
Resumo diversos em um só,
Unidos por essa falta,
Mas sou único pela escolha sem dó,
Boca que dentes não porta.
Marca de dentadas,
Nem em sonhos,
Abrir tampa bem fechada,
Só com mãos proponho.
O beijo é sublime,
Não depende de dentes,
Isso não me omite,
Até me sinto contente.
Dizem que os dentes na boca faltam,
Meramente perspectivista,
Pra mim as gengivas sobram,
Ainda recheadas com língua.
Não existe falta do que nunca tivemos,
Essa falta não é minha é dos outros,
A eles falta o que acreditam que todos temos,
Problemática da alteridade de corpo.