Amor Acidental

Amo teus restos,

Carnes espalhadas,

Resquícios de ferros,

Presos na fuselagem.

Acidente de trânsito,

Assunto corriqueiro,

Parentes em pranto,

Velocímetro ligeiro.

Viramos amantes de estatística,

Nosso corpos esmigalhados,

Num beijo que sufocou na batida,

Entrelaçados de chapas de aço.

Sua perna esbelta,

Contemplo próxima,

De fora a fora aberta,

Vísceras expostas.

Sua boca belíssima,

De ar sorridente,

Agora com pouca alegria,

Quebrados os dentes,

O maxilar solto,

Mandíbula pendendo,

Meu olhar é fosco,

Sinto estar te perdendo.

Estamos juntos mais do que nunca,

Os intestinos desenrolados,

Quebrou o pescoço, não vejo sua nuca,

Contemplo o rosto desfigurado.

Os olhos saltando das órbitas,

Mãos com dedos decepados,

Massa encefálica escorre pra fora,

Somos amores mutilados.

Família funérea,

Os filhos compartilham a miséria,

Seus cadáveres também proliferam,

Incestuoso festim de carne em geléia.

Contemplo a face pequenina,

Da nossa pequenina,

Partida ao meio na colisão repentina,

Não encontro o resto da menina.

Nosso filhote,

Sem cinto de segurança,

Lançando para a morte,

O corpinho a longa distância.

Como te amo nessa carnificina,

Familiares da arte moderna,

Engatados na máquina automobilística,

Abstracionismo da miséria.

Tanto sangue que podemos banhar,

Espirramos em pedestres,

Socorristas gritam ao tentar ajudar,

Não há quem a emoção não se entregue.

Urubus de olfato aguçado,

Sobrevoam o local,

Buscando refeição de acidentados,

Banquete sensacional.

Cães na beira da estrada,

Olhos ansiosos por uma sobra,

Mas a limpeza já foi chamada,

Respeito ao familiar que não se conforma.

Quero beijar esse lábio torto,

Beijo profundo, engolindo seus dentes,

Tocar esse seio rasgado e morto,

Gozar as delícias desse horror deprimente.

Mesmo estando empalado,

O braço uma massa sem forma,

Percebi que nem mais tenho falo,

Não sei onde parou minha rótula.

O aroma é nauseante,

Odor pra regozijo de Belzebu,

Veículos passam lentamente,

Todo o terror em dia de céu azul.

Meu amor é tão grande,

Que mesmo entre outros corpos,

Vítimas que são também amantes,

Partes de outros carros em destroços.

Dois veículos em destinos cruzados,

O estrago foi de tal forma,

Não é possível dizer quantos foram afetados,

Desviam o olhar da criança curiosa.

Sou espectador privilegiado,

Sentindo a dor fulminante,

Pânico de todos os lados,

Último suspiro dos ocupantes.

Aquele grito final,

Juntou-se em orgasmo,

Transferência fatal,

Teremos caixão fechado.

Revelamos as entranhas,

Ocultamos as migalhas enterradas,

Estrada com orgia de matança,

Vidas em milésimos de segundo ceifadas.

As alianças permaneceram nos dedos,

Mesmo você tendo arrancado a mão,

Sei que diante da aproximação do medo,

Seu olhar foi de puro amor no coração.

Nossos filhos souberam de relance,

Quando em breve gesto,

Fitou-os atrás em brevíssimo instante,

Para depois sofrermos o inferno.

Nosso amor é de carne e sangue,

Misturados a ferro, aço, fibra, vidro,

Com pitadas de objetos vibrantes,

Sujeitos estranhos, pais e filhos.

Sabá majestoso, dos mais completos,

Dança com carros, sangue em sacrifício,

Tenras crianças com destino certo,

Álcool de Baco como combustível.