O Dançarino

Sou eu que danço,

Com pernas falsas,

Assim me lanço,

Compasso em pauta.

Movimentos sem direção certa,

Rodopiando no espaço capturado.

- Um Dionísio! Um louco alega.

Na disciplina se faz marginalizado.

Sua sede de gestos simulados,

Um Pan sem trejeitos caprinos,

Despe-se dos malfadados andrajos,

Se faz de doce e sedutor libertino.

Embalado pelo coro de vestais,

Castrado pela parceira que o enlaça,

Voltando ao estado que o satisfaz,

Rói cada parte deste solo, feito traça.

Pés que varrem a poeira invisível,

Pierrot insano que pede uma valsa,

Sua monstruosidade é inadimissível,

Com sua objetiva nudez se calça.

Afronta Apolo com sua elegância maníaca,

Indomável corcel de vigor atlético,

Baila numa atmosfera deveras paradisíaca,

Não se finda, se faz de bailante cético.

Faz rolar cabeças feito um Shiva,

Sua dança é mortal à racionalidade,

Acéfalos contemplam sua harmonia,

Nem uma Hidra daria continuidade.

Petrifica a platéia com olhos de Medusa,

Nenhum Perseu atrevido entre os espectadores,

Fonte de inspiração, verdadeira Musa,

O único sobrevivente na arena de gladiadores.

Um beijo na boca de Zaratustra que vem dançar,

Mas logo se retira desse palco trágico,

A inconstância heraclítica não permite ficar,

O que preserva se faz de objeto tácito.

Filho do vento, criatura etérea,

Atiça o fogo, levanta labaredas,

Catástrofe móvel sobre a Terra,

Criando tempestades altaneiras.

Os cabelos são longos por prolongamento,

Os quadris requebram, parecem com outro esqueleto,

Se faz de Serpente em cadenciados movimentos,

Contorcendo-se com intuito de curvar seu corpo por inteiro.

Desafia Chronos nessa arte animista,

Rouba a Foice e sai fazendo colheitas,

Pescoços degolados são sua alegria,

Fertilizando feito Asteca receita.

E para, e olha para um corpo sem cabeça,

O dilema de um Hamlet sem crânio,

Sabe que na falta existe alguma certeza,

Compõe ritmos de motivos ditirâmbicos.

Os olhos numa face metade coberta,

Um olho jaz nas trevas da fronte,

Um Horus que a platéia não enxerga,

Voa feito Falcão do Egito distante.

Seu verbo sai no sapateado,

Comunhão entre espaço e tempo,

Saltimbanco já calejado,

Tenta viver de breves momentos.

Incorpora Loki e brinca com o público,

Sua risada é de uma ironia que causa pânico,

A força dos passos não tem objetivo único,

Em outros tempos o chamariam de satânico.

Dança com o Cristo amargurado,

Arranca gargalhadas do messias ultrajado,

Diz a Maomé que o seu deus é de pasto,

Mas que não sacrifique a natureza de Baco.

E as burcas são erguidas sem culpa,

Circuncisão só do moralismo,

Que a morte não sirva de desculpa,

Adeptos de um palco sem destino.

Anda sobre as águas de Poseidon feito surfista,

Vai às terras de Hades e desafia o reino dos mortos,

Eleva-se ao Olimpo e demonstra sua rebeldia,

Volta ao seu lar terreno onde erigirá seu propósito.

Nada de Ballet e danças acrobáticas,

A Dança é algo desvairado, de verdade,

Feito entidades de terreiros na África,

Deve-se renegar as leis da dita gravidade.

Algo frenético que leva até a exaustão,

Expulsando num ato corpóreo a razão,

Caindo desfalecido no colo do chão,

Ofegante e tonto pelo efeito da ação.

Toca Orfeu que quero bailar,

Preciso de um embalo auditivo,

Pra ter motivo para saculejar,

Que me acompanhem os cínicos.

Meu falo balança feito ponta de saia,

Rodando como peão que foi acionado,

A música invade a tez, o pelo arrepia,

Dou risadas sem motivo, sou um palhaço.

A minha alma se solta, torno-me duplo,

Dois de mim que dançam juntos,

Sou demais para me conter apenas num mundo,

Me duplico e me torno um conjunto.

Atravesso-me de um lado para o outro,

Sou refletido feito espelho opaco,

Me sexualizo com enfado e desgosto,

Um apêndice fantasma, feito um rabo.

De costas não vejo quem me vê,

Meu dorso eu não enxergo,

Como troca enxergo o tronco deles,

Por trás aos outros eu me revelo.

Acendam a fogueira pro meu Sabat,

O trepidar da lenha será meu som,

Quero nos braços de Nyx poder levitar,

A alcatéia uiva e dá o noturno tom.

Viro de pernas pro ar,

Faço das mãos os pés,

Danço fazendo espalmar,

Sou dançarino de revés.

Saci me faço num pé só,

Aleijado que salta desajeitado,

Trôpego num Dó menor,

Bailarino que se faz mutilado.

Eu que era sem cor, me tornei arco-íris,

Causo confusão nas vistas dautônicas,

O perfume das flores roubei numa nota Mi,

Minha fuga se faz em decadência diacrônica.

Na próxima escala eu me desfaço,

Um anjo sem asas, Ícaro em pedaços,

Que meus restos sirvam de pasto,

Ao pó retorno e através dele renasço.