O Caco de Vidro
Um caco de vidro,
Pedaço singular,
Caído e sem destino,
Falta o resto do quebrar.
Pois se aqui está,
É uma fração de algo,
Isso pouco importará,
É um objeto fidalgo.
Contemplo seus traços angulosos,
Correndo a ponta nos dedos,
Sentindo as extremidades, as toco,
Ele irá me revelar algum segredo.
Vou dobrando a manga da camisa,
Deixo à mostra o braço de pele clara,
Forço a ponta até perfurar a tez lisa,
Uma gota de sangue ali se instala.
Corro o caco de vidro,
Provoco um rasgo,
Agora é sangue a fio,
Cotorno o braço.
Várias ranhuras vou provocando,
Pequenos rios de leito avermelhado,
Um corte mais profundo é provocado,
Pode-se ver várias camadas de tecido rasgado.
Os sulcos apresentam o meu corpo interno,
Fluindo num desespero projetista,
O vidro conduz com violência para o externo,
Aquilo que antes eu velava com ojeriza.
Um minúsculo caco partiu,
Sinto ele dentro do tecido,
Parece uma farpa que feriu,
Expremo ele e sinto alívio.
O vidro não é espelho,
Ainda assim me revela,
Vai diluindo inteiro,
Enquanto corto a perna.
Se partiu em dois triângulos equiláteros,
Um eu cravei na órbita ocular,
Fiz o olho saltar, vazou líquido em um jato,
Ainda resta um pedaço para usar.
O último resquício do vidro,
Olho com o olho que me resta,
Segurando-o e rindo,
Minha viscosidade é indigesta.
Fecho a mão esquerda e aperto firme,
Sinto penetrar a palma, criando talhos,
Concluo esse ritual de auto-crime,
A lasca eu passo no pescoço e rasgo.
Caiu numa posição patética,
A cabeça pende e o sangue jorra,
Contrações por dilacerar a artéria,
Morto numa íntima desforra.