O Salto

Saltei, mas não deixei de tocar o chão,

O corpo precipitou-se para outro estado,

Pulando para dentro de mim com sofreguidão,

Como se o corpo fosse partido e ocorresse um novo parto.

Não existia noção de tempo,

Nem estado físico que explicasse,

Da mesma forma que temo,

Prossigo, como se disso necessitasse.

O sangue corre por minhas artérias,

O suor escorre por minha tez,

O fôlego desaparece como pilhéria,

Os gritos ecoam em silêncio pela Terra.

O salto é mais profundo do que pensava,

Os recônditos abissais se manifestam,

A profundidade do ser é infinita como o nada,

Cotidianos mortos já não me interessam.

Pensei estar saltando mais de uma vez,

Entretanto, não saí do primeiro estado,

A força desconcertou–me como embriaguez,

Já não sou mais consciência, apenas fato.

Ando sem sair do lugar, sinto que despedaço,

Morro estando vivo, saboreando cada sentido,

Me apropriando de cada movimento, domino o espaço,

Expiro o sopro da vida e continuo existindo.

As asas abrem-se, me sinto como anjo de fábulas,

Talvez alguma memória romântica que tenha sobrevivido,

Não me restam lamúrias de simuladas máculas,

Minha insistência orgulhosa tem auspícios de anjo caído.

Eu me entrego na penúria da resistência à entrega,

Dilacero o vazio com adagas de vento,

Dentro do que sou abrem-se diversas esferas,

Contingente, apenas o salto, que prolonga, lento.

Virado ao avesso não me aterrorizo com as entranhas,

A carne de que sou feito é de composição familiar.

Porque sentir horror em relação a formas humanas,

Será que nos habituamos tão rápido em desumanizar?

O poço é tão fundo que não sinto desespero,

Faço a caixa de Pandora se abrir com pujança,

Assolando-me como se sofresse desterro,

Tudo se esvaindo, nada restou, nem a esperança.

A luz esvaindo parece simulacro de trevas,

Me faz perceber a ilusão que sinto,

Pois luminosidades são apenas sombras,

De uma escuridão que vai ao infinito.

Liberto a besta que enfurecida ataca,

Arreganha os dentes com horrível face,

Articula o golpe afiando as garras,

Mas percebe o quão inútil é este desenlace.

O inimigo sou eu, isso constato,

Meditando sobre as possibilidades lógicas,

Não encontro racionalidade no que faço,

Minhas confrontações são contraditórias.

Olhos de Medusa me petrificam,

Não tenho escudo, abandonaste-me Perseu,

Deixado imóvel às intempéries que cintilam,

Afogado em um pranto que nem mesmo nasceu.

Completo o ciclo retornando ao início,

Eterno retorno, enfim, corroboro.

Sem me apegar a valores fictícios,

Aprisionado pela serpente Ouroboros.

Impotente em meio à força que me conduz,

Apreciando a física em movimento.

Recordo Ícaro! De fato, dominar os ares seduz,

Quem sabe pássaro serei em outro momento.

O som que tentei proferir, agora me atino,

Não são vozes caladas em mudez falada,

São ecos que se multiplicam no abismo,

Reproduzindo lacunas de uma bruma malfadada.

Agora vejo as estepes com nitidez,

Antes escondidas em meio a frondosas

Proliferações de pura insensatez,

E sonhos de aparência rochosa.

O sorriso que aparece é esboço,

De uma tristeza alegre da melancolia,

Vendo o precipício que agora parece fosso,

Sinto esvair toda a euforia.

Feridas tão profundas são abertas que não enxergo cicatrizes,

Simples fatos eu renego por ignorar sua complexidade,

Colorindo minha dor em diversos matizes,

Completando o digladiar de minha personalidade.

Nem Morpheus teve piedade,

O cansaço não dá sinais apesar deste momento extenso,

Já abafam os clamores, que calamidade,

A realidade se desfez, mas não me livro do tormento.

Se não tivesse saltado,

Que importa especular,

Agora estou fadado,

A sentir e não ao “se” que há.