Um herói não morre
PAPAI,
Estou com saudades...
Ouvindo esta valsa - Rapaziada do Braz – a sua preferida,
sinto-me compelida a transcrever-lhe em versos
o meu sentimento por você.
Sabe, papai, conheci na minha infância
a estória do Gigante Adormecido da Guanabara,
lida nos meus primeiros livros, ainda no primário,
no Grupo Escolar Antônio João.
Segundo a lenda, aquele homem colossal, tão nobre e justo,
que povoou meus devaneios de menina,
um dia adoeceu e, o Criador, condoído,
ao invés de levá-lo para junto de si,
adormeceu-o para sempre na Baía da Guanabara,
ao lado de todos que o amavam.
Aquele homem lindo e protetor, fixou-se na minha adolescência,
levando-me a procurá-lo em cada jovem que de mim se aproximasse...
Aquele ser humano realizado, audaz, honesto, alegre e feliz,
ao me tornar mulher, tentei arremedar,
pretendendo ser exemplo a cada filho meu...
Por mais excêntrico que lhe pareça
a um primeiro olhar,
aquela inocente estória passou a fazer parte da minha própria história!
Inigualável a emoção sentida ao vê-lo, pela primeira vez,
destacado das minhas fantasias, nos idos de 70.
No último andar de um prédio na Praça Sans Peña, no Rio de Janeiro,
no Curso Miguel Couto - Pré-Vestibular,
meus colegas não conseguiram vê-lo,
nem entender o por quê daquela emoção tamanha
estampada nos olhos que enxergavam o contorno nem por todos visualizado.
Como desconhecer o que se tem na frente do olhar,
se me bastava, apenas, para alcançá-lo, estender as mãos?..
Daí em diante, já que o ignoravam e eu o amava tanto,
tomei-o por meu:
“Deitado eternamente em berço esplêndido,
Ao som do mar e à luz do céu profundo...”
E o tempo passou...
Muitos anos depois, na Barra da Tijuca, reencontrei meu Gigante Adormecido.
Desfrutávamos então o mesmo recanto geográfico.
Embora, desta vez, envolvidos pela encantada insânia,
meus filhos não conseguiram enxergá-lo na penumbra do cair da tarde...
Mas, embora desconhecido, passou a ser chamado:
“O Gigante da Mamãe!”
Mais uma vez o tempo correu...
Transformei-me em professora, na vida que tanto me ensinou...
Certa feita, em sala de aula, pelas vidraças,
exsurgiu meu Gigante Adormecido,
sempre belo e mudo...
O coração pulsou e, imediatamente, no enredo da aula,
anexei as palavras conhecidas na minha infância.
Mais uma vez, todos se emocionaram junto a mim
e dali para a frente passaram a repetir:
“Olha lá, o Gigante da Professora Sílvia Mota!”
Desde então, faz parte dos meus ensinamentos,
a ficção de outrora,
conhecimento ingênuo adquirido nos primeiros livros, ainda no primário...
Você não sabe, papai, mas em cada homem que trilhou na minha vida,
busquei Meu Gigante! Impávido colosso!
Alguns se fizeram parecidos em momentos fugazes...
E o tempo continuou passando...
Um dia, papai, numa madrugada de setembro, você partiu...
- até no momento de ir embora você nos ofereceu as flores da primavera -
e, enquanto o dia amanhecia, relembrei nosso passado...
No embalo da sua sedução deixei-me levar tantas vezes...
O primeiro corte dos longos e cacheados cabelos negros,
ainda tão menina, você conseguiu,
ao traduzir em palavras o quanto ficaria linda e livre ao sabor do vento!
Nos seus braços, papai, dancei a primeira valsa
e no seu sorriso inigualável descobri meu primeiro amor.
Sua elegância, rigidez na conduta,
seu caráter... e seu amor pela mamãe,
fizeram-no o homem mais bonito de toda a minha vida!
Minha infância e adolescência foram pautadas
nas músicas que você compunha, no som do seu piston...
E foi no seu olhar que descobri o azul
jamais encontrado em nenhuma das minhas palhetas.
Como ficava bravo diante dos meus pensamentos amorosos!
Os pretendentes (quantos inocentes!), jamais desafiavam sua presença.
E, os mais afoitos, precisavam demonstrar muita inteligência,
para merecer o olhar de sua filha... a pretinha do papai...
Seu olhar e seu discurso...
Em cada momento, uma nova emoção!
Despertei a vaidade feminina
desfilando na sua frente roupinhas e penteados novos...
E, embora instigando-o sempre,
jamais consegui arrancar-lhe frase diferente dos lábios apaixonados:
“Linda, muito linda! Mas não tão linda quanto sua mãe!”
Naquele concurso de beleza realizado no Elefante Branco,
quando, aos 16 anos, não me concederam o primeiro lugar,
sentiu-se você injustiçado,
dizendo mais tarde aos colegas aposentados, na Praça da Bandeira:
"As passarelas da minha filha, daqui para a frente, serão as ruas de Piquete!"
Nas eleições do Colégio Guimarães Rosa, na década de 60,
quando, entre tantos meninos, alcei a posição de presidente do
Grêmio Literário Assis Chateaubriand,
ao sentir minha emoção, você disse:
“Guarde suas lágrimas para quando entrar na Faculdade".
Acrescentando a seguir:
"Chore somente de felicidade!”
Mais tarde, com os olhos marejados de lágrimas,
antevendo os resultados da minha inexperiência
ao escolher o primeiro amado, ouvi o seu sinal de alerta:
“Você precisa de um homem que faça você,
não um homem que seja feito por você!”
Tantas frases descuidadas e doridas também pronunciou
- afinal, você é falível, papai! -
e que ficaram guardadas no meu coração,
como referencial de vida, para sempre... e sem mágoas...
Mas... o que tem a ver você com aquela lenda que permeia
a Cidade Maravilhosa do Rio de Janeiro
e encanta minha vida desde a mais tenra idade,
quando ainda corria pelas ruas
de Piquete, a Cidade Paisagem?
Ah, Papai!
Olhando-o sereno, no leito exequial,
percebi que a imagem do Gigante Adormecido da Guanabara,
transmutou-se constantemente no meu sonho sonhado,
no meu amor procurado,
na minha intrepidez e honestidade decantadas,
na Pátria Brasil desejada...
sem me aperceber de que era, o tempo todo,
reflexo de você na minha vida!
Tal o Gigante da linda narrativa que repassarei
enquanto tiver voz para fazê-lo,
você não morreu... porque um herói não morre... apenas adormece!
E, quando a saudade apertar, fitarei com orgulho, na paisagem,
o Gigante Adormecido da Guanabara,
- meu doce papai, meu eterno namorado -
adormecido bem perto de mim, cá bem dentro de mim acordado...
sublime delírio eternizado nas fontes da minh'alma!
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
A vida do meu papai adormeceu, nesta existência,
na madrugada do dia 22 de setembro de 2002,
aos oitenta e seis anos de idade.
Imagem do Gigante Adormecido da Guanabara, idolatrada desde a minha infância
Desenho encontrado num livro com mais de 100 anos na
Secção de Iconografia da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro - Divulgação