Não tinha sonhos
Viver é bom, muito bom
Sobreviver é melhor
Quem sobrevive tem histórias para contar
A si mesmo apenas
Às vezes apenas a si mesmo
Quando eu era menino
Não tinha sonhos
Ficava pensando no que eu ia comer amanhã
E hoje eu conto isso prós meus filhos
Porque sobrevivi
Não tinha natal
Não tinha dia das crianças
Mas as vezes a gente comia
Arroz com feijão
Com o maior gosto do mundo
Era muito bom...
O dia chegava de manhã
Mas o cheiro do café não acordava a gente
Muitas vezes nosso coração
Ficava frio
Como o fogareiro só com cinzas
De dias anteriores
E eu não sonhava
Pensava sempre no que eu ia comer amanhã...
Minha tia estendia sobre nós um olhar sem brilho
E seu coração milagroso
De alguma forma nos acarinha a
Como se dissesse que amanhã
O dia ia amanhecer como fumaças
Com cheiro de café e farinha...
Era tão bom café com farinha,
De vez em quando eu como café com farinha
E fico lembrando de minha tia
Que não podia,
Com seu amor imenso
Encher nossas barrigas sempre...
Mas tinha um dia do mês que era muito bom
Ela chegava da rua com uma pequena caixa
Tinha café
Açúcar
Farinha
Arroz
Rapadura,
Uma goiabada,
Uma piranha amarela e
Farinha...
Era quando ela recebia
Sua pensão
E por um ou dois dias
Eu não pensava no que ia comer amanhã...
Minha tia se foi,
Ela gostava de ler pra nós
Com sua leitura de quem não estudou
Uns romances de cordel
Ficávamos ao redor dela
Sentado no chão batido de nossa casa que não era nossa
Não sei os outros
Mas aquelas histórias contadas por ela
Me fazia esquecer o que ia comer amanhã...
Viver é bom
Mas não sei como é viver
Só sei sobreviver
A vida perdeu o gosto
De tanto desgosto
A vida perdeu o gosto
A sobrevida não...
E as vezes eu durmo no chão
Eu durmo em qualquer lugar
E não penso mais no que eu vou comer amanhã...
De tanto pensar, deixei de pensar
E hoje, quase mais velho que minha tia
Tudo que eu queria
Era lhe ouvir contar
Aquelas histórias belas que me faziam esquecer
No que eu ia comer amanhã...