Orfeu e Narciso
Canto VI
Despossuído de consciência,
Voei nas asas de minhas palavras,
Caindo em orgulho pelo canto.
O chão que caí,
Comeu minhas asas,
Em consequência
Errônea de minha sina.
Olhei abalado aos
Céus de mármore,
Em olhar desencantado
De infanta,
Lucido de minhas derrotas,
Fatigado de vitórias.
O lago que contemplava
As úmidas terras que
Vegetavam minhas palavras-asas,
Tornaram-se espelho.
Minha imagem cintilava,
Em degradação de rutilância,
Sobre a juventude de meus versos.
Foi assim que ao olhar a corrente-vidro,
Revelando faces de minhas mentiras,
Encontrei Narciso.
Narciso que ao pisar nas águas,
Ecoava sua retumbante imagem,
Dilacerando verdades,
Iluminando seu rosto nácar,
Seus olhos viciados, sua boca em delírios,
Seu nariz em narinas abertas
E desbravadas pelo olhar
De sua mentira-imagem.
Orfeu: Narciso de minha vida,
Resta-te agora vagar
No teu maior desgosto:
Tua imagem que dança
Como um deus morto
Que goza as interferências
Na vida humana.
Narciso: Não é peso. É destino.
É imagem velada
Por vozes e ecos
Que me cantam.
Sou poeta.
Sou minha própria musa.
Sou face vedada por versos.
Não cantaria nenhuma
Ninfa ou musa que
Reste nesse vasto mundo.
Viveria apenas para cantar
Minha imagem.
Olhando para meu rosto
Navego pela insânia
Vontade do meu eu.
Canta-me, ó musa!
Sou tua inspiração
Em águas-imagens de escuridão.
Sou quem te usa!
Sou figura de teu riso,
Paixão desgovernada,
Eu, o teu Narciso,
Em águas lavadas
Pelos triunfos dos tempos
Que penetram nos atentos
Que me inspiram em alento.
Sou as belezas da virtude,
Com minhas faces, eu atento,
Com minha voz de alaúde
Rijo algoz do poeta primeiro.
És Orfeu? És a tua verdade?
Orfeu: A verdade do canto.
Sou poesia demasiada.
Teu ego é o teu canto.
O meu é o mundo.
Tudo que tronar-se-ia
Em palácios da mãe natureza.
Eu nomeei o ar, a terra, o fogo,
A vida que fenece, este mar,
Estes espelhos que deliram
Os teus rostos de mentiras.
Inclusive o passado,
E este absoluto tempo
Que se revolta
Com os mortais que o pisam.
Tu, que és mortal às tuas verdades,
Submetes a palavra em mares
Nunca navegados, sobre leviatãs
Escarrando falsas realidades,
Em meio aos píncaros do canto.
Os deuses criaram o teu castigo:
O teu reflexo em estado cíclico.
É a sua inveja.
É a tua maior cobiça:
Enxergar a ti como esses mares
Revelam-te; uma carcaça
Sobre tuas fantasias
Mais burlescas, em gotejo
De uma vida inteira de ecos.
Como o rolar de uma serpente
Em fruto etéreo das tuas
Potências fúnebres e sós.
Narciso: Sobre esses leviatãs
Encontra-se o esgar
Da verdade, em prantos.
Não há um efêmero ser
Que suporte esta vida.
Vida que resta apenas
Ao olhar para si.
O meu eu que era,
É e será.
Minha beleza
mergulhada nessas
Águas, não revelam
O que eu sou,
Mas quem fui.
Monstro absoluto de
Pensar de quimera
Involucra a face divinal.
Eis o meu maior peso
Que não é andar sobre
Minha morte.
É andar sobre
A maior tragédia
Que acometeu a carne: eu,
Um humano de passado.
Esse deveria ser o meu legado.
Não a minha fatalidade
Final à vida.
Essa que se tornou bela.
Mas a minha carne,
Está escrita à sangue,
Quando despossuí
O futuro e o presente.
Restando-me o passado,
Como nomeastes.
Sem canto milagroso,
Campestre e invocativo.
Apenas o canto sobre
Minha vida afogada
De mares e faces
Da minha mentira
E do meu passado.