Orfeu em Itabira
Canto VII
A C. Drummond de Andrade
Eu sou o poeta de um mundo caduco.
Apenas não cantarei o mundo futuro.
Isso me cobre em lençóis quentes
De Itabira, em verão provinciano.
Itabira não é uma ilha nem foi raptada
Por serafins. As mãos que a seguram,
Com o tempo, sucederam-se ao rompimento
Em sua desordem vil e complexa.
Ela, por sua vez, tornou-se enigma
De turvas memórias, que nutrem
A velhice, fatigando-nos ao que se foi.
Itabira não se rege ao canto.
A dança se esvai, como a modernidade,
Dividindo a melodia e a rapsódia
Do fracasso afônico ao soar
Que se regozija em língua absorta.
O meu legado resume-se à Itabira.
Possui dispersos momentos de glória
E transtornos como em meu coração
Provinciano de minhas próprias fábulas.
Tudo isso é legado desamparado
Como uma pedra em meio ao caminho.
Em meio ao um caminho como uma pedra
O meu canto está dividido ao espaço.
Estou só em minha torre de memória.
Eurídice se foi, o canto desuniu,
Tudo acabou, tudo sumiu
A noite mais que noite ficou
Só em meio a desesperança,
Sem teogonia, igual aos incertos,
Que corroem aos berços de sua
Distante e desmembrada infância
Que não acaba mais.
Vagueio pelos alpes das ruas de Itabira.
Em meio ao mar de mistério que
Minha vida, assim como Vasco da Gama,
Desbrava pela história de um povo.
Minha epopeia não é heroica,
Não é um auto, não é picaresca.
Se basta apenas às chagas do mundo.
O herói de voz branda e vã,
Canta como um louco, arquejando
E tapando as veias e a carne deste corpo.
Balbuciando inferno, purgatório e paraíso
Em declínio às ruas altas da província,
Chegando às minhas Índias,
Que se dissecam em imagem de igreja
Bravejando suas raridades:
Seus roucos sinos.
Mal sabia eu que minha descoberta
Seria melhor de que a de Vasco da Gama.
Existe em meio aquele afresco vivo,
Uma alma que tece o que foi, o que é
E o que será. O teu nome é José.
É nome habitual e indeterminado.
Faz parte de sua incerta-epiderme.
Não tem a certeza seduzente que aprisiona.
Tudo o que será e poderia ser,
O descreve com excelência.
É sujeito incerto. É gauche na vida.
É morte atormentada por inseguranças
Que não pode suportar mais.
É algoz do futuro.
É aquele que tem o desespero do mundo.
Portanto, faz-se necessidade ao tempo.
É preciso olhar as nuvens de pólvora
Em suas formas pretas de chuva,
É preciso ouvir o som verdoso
Dos ventos,
É preciso adentrar a natureza,
É preciso tornar-se Fauno,
É preciso entender a infância da terra,
É preciso compreender as engrenagens
Que estruturam esse chão, esse vento,
Esse céu e esse “preciso”.
É preciso abrir a máquina do mundo.
José olha para a máquina,
Em sua circunferência clássica,
Advento de sua imagem grega.
É forjada à forma de meu pai Apolo:
Digna à perfeição de sua imagem.
Cada matéria sustenta-se no espaço,
Em harmonia, com o seu próprio canto,
Em lugar remoto aos barulhos
Que se cruzam entre a realidade
E a fantasia de seu abrir desolado.
Não era uma sinfonia, um poema,
Uma sonata, um soneto.
Era o próprio mundo-compositor
Em sua orquestra cheia de astros
Sós, vagando pela expansão Infinita
De sua música em volta daquela esfera
Que condicionava as pedras
no meio do caminho:
Adamastores-desafios em vida.
José olha-a, profundissimamente
Melancólico, pelo caos incerto do mundo.
Não estávamos nas eras das naus.
O mundo era um pequeno complexo
De terra distantes, mas perto uma da outra.
O mundo não é o cosmo de Dante
Nem o mar de Vasco da Gama.
Tudo fora deixado lá atrás.
Mundos não hão de aparecer.
O mar foi poluído e está secando.
Dante e Vasco se apresentam
Em reminiscência dos que foram.
José os representa.
Não possui nau alguma.
Não possui Virgílio algum.
Só possui os tempos que vislumbra.
Horas, minutos e segundos incertos.
Para que aquele globo em sua mão?
O que lhe vale esse mundo perplexo
Em sua mão cheia de dores e suor
Abatendo os sentimentos do mundo?
José retrocede o olhar para mim.
Entrega-a em minhas mãos
Que tangem a lira em musas-mãos,
Mas se tornam febris e dormentes
Com a esfera que mostra o vasto mundo.
Por que aceitaria segurá-la?
Por que iria querer moldar
O Funcionamento de tudo?
Se agora tudo que escuto,
Vejo, toco, degusto e cheiro
Dá-me o incerto silêncio do mundo.
Que o joga ao pranto,
À minha epopeia, à minha sina,
A meus dedos e à minha lira no globo.
O mundo se tornou as palavras do anjo.
Aprisionado em seu sísifo-fado.
“Vai, mundo, ser gauche na vida”.
Quando senti essas palavras,
Em minha ideia, eu soube:
O mundo é a pedra no meio do caminho.