Reza
Queria poder estragar a surpresa.
Quem ne dera a possibilidade de bisbilhotar o futuro.
Quem me dera conseguir iludir o destino.
O processo me entedia.
Quem me dera saber se o sofrimento vale à pena o fim.
Tenho cochilado durante os trajetos.
Não tenho tempo de investigar com os olhos o caminho.
Meu carro viaja a 180 km/h.
Não existem formas distinguíveis.
Preciso saber se o futuro é, de fato, um penhasco ou uma parede de tijolos.
Terei tempo de puxar o freio?
Arranquem meus ossos.
Rasguem minhas carnes.
Enfiem-me uma estaca no peito.
Queimem meus cabelos.
Distribuam meus intestinos.
Perfurem meus olhos.
Despedacem meu crânio.
Lobotomizem meu cérebro.
Sufoquem meu fôlego.
Triturem minha língua.
Ainda assim permanecerei eu mesmo?
Minha tia reza por mim.
Ela intercede por proteção e amor.
Não tenho a quem pedir.
Posso ainda ser impuro e amado?
Me tiraram a voz, a vontade, o desejo e a coragem.
Sou retalhos do que já fui um dia.
Sou um remendo de veias e pele.
Mas minha máscara é, deveras, bem trabalhada.
Consegues enxergar meu sorriso?
Ele irradia, não é mesmo?
Caminhei sem destino pelas ruas de Minha cidade.
Quem dera a noite aceitasse meu pedido de casamento.
A morte andou do meu lado.
Conversamos.
Quem dera lembrar o assunto dos nossos diálogos.
Não sei se a convenci.
Não sei se nos tornamos amigos.
Talvez o acaso tenha me protegido.
Talvez ela queira me encontrar sóbrio.
Então tragam-me o vinho, a cidra, o conhaque e o whisky.
Deixem em minha mesa a cerveja, o rum, a cachaça e a vodca.
Não esqueçam o gin, a ganja.
Me tragam o fim e a manhã.
Um raio de sol, se possível.
Hoje quero encontrá-la novamente.
Conversar por um longo tempo.
Confrontá-la.
Prometo ameaçá-la por não cumprir com seu trabalho.
Prometo denunciá-la por sua crueldade .
Tragam-me o trabalho e as romarias,
A galinha preta e a mesa branca,
O incenso e a ayahuasca,
O tóxico e o cogumelo,
O altar e o sacrifício.
Tragam-me porque hoje falarei com seus superiores.
Todos eles ao mesmo tempo.
Todos eles em uma mesa.
Comeremos e , bêbados, invocaremos o Acaso.
Ele há de nos responder.