Eu Fui
Última página lida de um jornal ultrapassado,
Aquela notícia esquecida, outrora anunciada,
Linhas preenchendo uma última folha em branco de papel ao maço,
Consubstanciando uma caligrafia herméticamente formatada.
Me sentia como aquela única nuvem que resiste ao ocaso no céu,
Amplitude neblinosa que inspira por sua imagem aérea,
Suspensão que os leigos tomam como fenômeno divino, tornando o objeto réu,
Sumindo com resistência ao que tínhamos por hábito numa vida cotidianamente séria.
Aquela fresta que não conseguimos aniquilar,
Lembrando-nos sempre do hiato existencial,
Uma lacuna vivida, pronta a nos devorar,
Tornando-nos um entre-brechas marginal.
Aquela gotícula de saliva que emerge no canto da boca,
Feito sujeito atrevido que sai dos bastidores e entra em cena,
Aviltando uma ordem que na sua concepção é tola,
Servindo-se, para também se fazer ver, de sofisticado estratagema.
A sobra de tutano que o cão desprezou,
Resquício de um apetite saciado,
Sobra infame que alguém fez pouco caso e largou,
Consequência de um consumo inacabado.
Fiapo de linha caído ao chão,
Desprendido de algum tecido barato,
Relegado aos dissabores de uma corrente de ar em ação,
Contemplado como mesquinharia ao olhar mais detalhado.
Pedra desprendida da sola de um calçado,
Não mais provocando incômodo como infortúnio pisado,
Inerte e descreditada aos andares apressados,
Compondo um cenário imaginado ingenuamente como fossilizado.
Resto de um drinque no fundo de um copo,
Liquidez refletindo o estado mental alcoólico,
Trago rejeitado pelo gole suprimido por um suspiro lógico,
Fluidez que congela o gesto mecânico de ingerir o tóxico.
Ruído atrasado que chega aos ouvidos por teimosia,
Repercutindo um som que ecoa no vazio,
Vagando ao encontro de quem o receba, mesmo por letargia,
Tendo um vago sentido obtido por fastio.
Penugem sem graça amparada por um meio fio,
Desprendendo-se por leve lufada de ventania,
Atraindo olhares já fixados ao céu com ares de brio,
Inspirando poetas pela noção ingênua de delicada harmonia.
A faixa arranhada do disco de vinil clássico,
Fazendo a agulha saltar na vitrola, marginalizando a falha,
Muitos desejariam saltar fases da vida, de fato,
Retornando ao curso da canção que a pausa sinuosa intercala.
O ganido de um cão vira-lata pustulento,
Deixado na sarjeta pela rejeição humana,
Agonizante murmúrio de um condenado ao sofrimento,
Simulacro brutal da indiferença que nos instiga e ao mesmo tempo atormenta.
Restos de uma refeição doada a um indigente,
Tendo suas sobras desprezadas também pelo faminto,
Azedando sobre o asfalto sem ser absorvida, feito organismo insurgente,
Útil a tantos esfomeados, tem aqui apenas a decomposição exposta como sentido.
Poste entortado por acidente automobilístico,
Expondo sua estrutura de vergalhão amassado,
Uma obra contemporânea que remete a reflexão sem valor artístico,
Deformações do ambiente urbano engenhosamente arquitetado.
Boneca rosada com a perna arrancada,
Lembrança de uma infância sentida,
Matéria que serve de arqueologia presentificada,
Compondo uma realidade vulgar, do dia-a-dia.
Correspondência extraviada pelo correio,
Feito bala perdida, atingirá destinos improváveis,
Será remetida à origem feito adulto retornando ao útero de onde veio,
Ou destruída por receptores de índole não confiável.
Fui tantas coisas que acabei deixando de ser várias,
O ter-sido aliado ao não-ter-sido confluem ao não-ter,
Fica a pergunta se em algum momento “tive” na prática?
Talvez! Resta-me aquilo que permanece feito niilista estrutura, o nada-ter.