Por Detrás de Seus Cabelos
Era um dorso de tez pálida,
Poderia ter passado despercebido,
Mas algo destacou-se na pele flácida,
Chamando-me atenção, eu estava detido.
Madeixas caíam volumosas,
Pesando sobre as costas lívidas,
Desembaraçadas e frondosas,
Ocultando uma nudez tímida.
Era um corpo feminino ereto,
Não podia contemplar a frente,
Imaginava as formas por certo,
Mas não passava de especulação imprudente.
Se me perguntarem como se vestia,
Jamais saberia descrever,
Era a parte de cima que me atraía,
Jurava estar a entorpecer.
Por um instante pensei sofrer de tricofilia,
Não era uma obsessão doentia,
Manifestava um instante de sincera alegria,
Daqueles poucos nos dias conturbados que temos em vida.
Fácil trazer à tona um eufemismo vulgar,
Buscar os mitos vangloriando poderes capilares,
Evocar histórias românticas de natureza rudimentar,
Contemplar um antropocentrismo de idílios seculares.
Essa musa realmente tem ares de Medusa,
Atônito, pareço petrificado,
O espelho eu ignorei por recusa,
Me envolvi em um ângulo deveras apropriado.
Vasta cabeleira que cai feito tapete,
Toma este espaço suspenso, preenchendo-o,
Movimentando-se ondulante diversas vezes,
Mágica hipnótica que serve de provimento.
Fica a vontade em saber sobre sua textura,
Como será a sensação tátil,
Os fios entrelaçados entre dedos com mesura,
Um nó ou outro que consigo desatarrar.
Noto certo alisamento artificial,
O que não apaga o intenso brilho,
Pontas eriçadas por algum desarranjo natural,
Formas serpenteantes com imperioso brio.
Sonho de dádivas capilares,
Cobrindo este crânio de forma travestida,
Estética firmada em ricos detalhes,
Beleza amazona que se faz destemida.
Sansão ao contrário, ou Dalila masculina,
Pois no cabelo do outro que me revigoro,
Elixir acessível que meu corpo anima,
Única paisagem humanística que me importo.
O aroma chega ao meu olfato,
Alguma espécie de produto capilar,
Mas atenho-me a outra sutileza no ato,
O doce cheiro do couro cabeludo que consigo inalar.
Um polvo erigindo tentáculos,
Emaranhado de pelos aglomerados,
Composição versátil de um teatral espetáculo,
Vez ou outra a cabeça se vira pra mim, mas eu disfarço.
Certos momentos parece manequim de vitrine,
Em outros aqueles bonecos que só possuem cabeça,
Figura separada que recortei feito cena de filme,
Fragmentando parte do ser com particular destreza.
Sou análogo a um escalpelador,
Meu troféu será deveras sedoso,
Mas retirado do seu motivo vivificador,
Perde os atrativos, torna-se fastidioso.
Me agrada a dama adornada com este adereço,
Os cuidados dispensados para preservar,
A deterioração que o tempo impõe ao mesmo,
A lógica destrutiva na qual irá se findar.
Acompanhou a mulher ao longo da vida,
Na infância opressoramente controlado,
Na adolescência um imprudente desleixo de rebeldia,
Por término a maturidade que o tem como acurado.
Quase um utensílio vestual orgânico,
Algumas vezes escondido por chapéu,
Híbrido em enfeites, cortes, modelos heterônimos,
Aguça a curiosidade alheia, esse é seu papel.
Cria mistério ao cortinar a face,
Alogando-se até onde os olhos alcançam,
Fomentando em curiosos a descoberta do desenlace,
Servindo de pilhéria aos que desajeitadamente dançam.
Deixam marcas vísíveis ao desprender fios,
Encontramos espalhados pequenos pedacinhos,
Também visualizamos mechas de motivos rígidos,
Sobras perdidas em descompromissado desalinho.
De repente, a mulher vira-se e me encara,
Mas as madeixas caíram em sua face,
Presenciei um olhar obscuro de elegância rara,
Com dedos finos abrindo o rosto, agora em destaque.
Era um palco, onde a obra-prima se revelava,
Minha conhecida de tempos remotos,
Facilitando aproximação para respeitoso cumprimentar,
Ajeitando de forma tímida os trajes tortos.
Foi quando nos abraçamos cordialmente,
Pude manifestar meus instintos reprimidos,
As mãos adentrando aqueles cabelos, de forma fremente,
Êxtase quase descoberto, mas me atinei e o desejo foi reprimido.
Estávamos em um salão de beleza,
Minha conhecida foi conduzida aos profissionais,
Sentada, cortaram bem rente sua cabeleira,
Fui esmorecendo à medida que a tesoura picotava as partes.
Me levantei e saí sem despedir,
Não gostaria de contemplar o horror daquela cena final,
Meu modelo ideal acabava de diluir,
Restava na lembrança o simulacro caricatural.
Eu produzi aquela existência capilar suspensa,
Guardei no âmago com aguerrido particularismo,
Feito um Dr. Frankenstein, a pós-criação foi minha convalescença,
Sepultados criatura e criador numa neurose barroca de profusão de estímulos.