A Fuga
Meu desejo mais ardente,
Fugir a todo custo,
Nada poderia me deter realmente,
Escaparia mesmo a preço de luto.
A empreitada não foi fácil,
Burlar tudo que conhecia,
Num instante tomar uma resolução ágil,
Perder de vista toda uma vida.
Memórias deliberadamente esquecidas,
Momentos agradáveis em suspenso,
Convívio de outrora tratado como despedida,
Expressão máxima de um mordaz intento.
Não me apeguei ao deixado,
Por isso caminhei sem olhar pra trás,
Mas ainda restava algo fragmentado,
Não se consegue expelir de si tudo do que não é mais.
Me precipitei ao desconhecido,
Criando perspectivas renováveis,
Explorador de novos paradeiros,
Eremita andarilho de motivos instáveis.
A estrada se abre diante de minha fronte,
Mas o caminho eu já havia pré-determinado,
Um passo que damos e já não estamos aqui, mas adiante,
As pegadas que deixamos são pretéritos fossilizados.
Olho o novo como uma criança ávida por descobertas,
Sinto ecoar um grito mudo contido em meu peito,
Tento me organizar, distraindo-me com várias tarefas,
Mas quando me deito à noite, sofro em meu leito.
Os laços sanguíneos se esvaíram,
As amizades, de surpresa vi desinteressadas,
Estava só, não por falta de companhia,
Mas porque assim me sentia, cada dia que passava.
O alimento mudou de sabor por conta da nova atmosfera,
Tentei algumas vezes imaginar o antigo gosto,
Só conseguia reproduzir paladar de uma angústia que dilacera,
Então contentei-me com o presente roto.
Observei olhares furtivos que me cativavam,
Sedento de um reconhecimento estranho,
Parecia ambicionar familiariade aos que me ignoravam,
Um pedinte de atenções, aprisionando o próprio pranto.
Sofri a cegueira da visão,
Olhando eu não enxergava um palmo,
Contagiado por maliciosa ilusão,
Carregava um fardo e dissimulava, feito num palco.
Sentando diante da sarjeta de uma consciência débil,
Atônito pela não correspondida esperança,
Preso, arisco, com a face voltada ao chão, um abjeto réptil,
Proferindo impropérios feito rebelde criança.
Tendo secado a fonte refrescante que me servia,
Apoiava-me nas valetas que a mente criara,
Acocorado, me fartava feito cão que se judia,
Feliz pela água suja, esta ainda não secara.
Talentoso em criar subterfúgios para a tragédia diária,
Ator na arte de enganar a si próprio,
Mestre que redime seu estado com falsas intenções perdulárias,
Corrói cada ato por concebê-lo enquanto opróbrio.
Não sente piedade em relação a si,
Mas compreende esta condição vil,
Nunca estará satisfeito, seja aqui ou ali,
Prossegue de forma mecânica com seu ardil.
Sofistica seu esquecimento,
Manipula para dissolver seu pretérito,
Uma sombra o segue, causa aborrecimento,
Morrer talvez seja o único remédio.
Falecer pra si é ainda estar vivo aos outros,
Mesmo morto a outrem, existo pra mim.
Como é complexa a alteridade, será que estou louco?
Se assim for, nada além da insanidade, posso garantir.
As crenças não são meu forte,
Mas não-crer seria ainda acreditar em algo,
Fui achincalhado pela má sorte,
Mesmo assim, como bom viciado, com a vida ainda jogo.
Realizei um solilóquio muito divertido,
Não tenho escrúpulos para conter meus desvarios,
Nunca fui hábil em não dramatizar para comigo,
Por isso, sendo favorecido, me coloco feito desvalido.
Nem a dignidade de criar um inimigo,
Coadjuvante de uma peça viva,
Senil ainda muito pouco envelhecido,
Garboso plebeu que regurgita falsa fidalguia.
Foi quando me ocorreu certo lampejo,
Sendo tomado por uma razão repentina,
Esmorecendo qualquer forma de gracejo,
Açoitado por uma realidade doentia.
Sempre esta aflição me acompanhará,
Estar em fuga o coloca distante de certas coisas,
Mas você, a causa maior, sempre lá estará,
Conviverá consigo, mesmo que todo o resto se mova.
Poderá andar até os pés sangrarem,
Passar por certa lobotomia,
Vivenciar os mais diversos lugares,
Ainda assim, não se privará da própria companhia.
Mesmo sem memória sua e alheia,
O fato de ter ocorrido uma existência,
Faz criar um Para-Si que o sujeito permea,
Terá a si mesmo como fim, emergindo uma essência.
Antes de terminar o raciocínio,
Fui tomado por uma náusea súbita,
Nesse instante acabou meu martírio,
Estou excretendo as últimas súplicas.
O corpo amolece e caio no chão,
Desfaleço por um ócio letárgico,
Um cadáver exposto por antecipação,
Breve retomará a consciência, de volta ao mundo carrasco.