Um Suicida
Olhar paralizado diante da cena,
Momentos longínquos,
Nó górdio comprime a garganta,
Sem necessidade de prelúdio.
A lâmina prateada fascina,
O fio afiado é excitante,
Metal deslizando pela carne com alegria,
Sentidos perdidos de forma nauseante.
Os olhos fixos no desespero,
Manifesto por reluzente calmaria,
Nada de futilidades e apegos,
Apenas a torrencial hemorragia.
Cego diante de olhos escuros,
Trevas que invadem o ser,
Boca salivando como expurgo,
Corpo pesado antes de fenecer.
Urna que se abre ecoando gritos de quimera,
Coração batendo frenéticamente,
Corpo afetado como espasmo violento que tivera,
Feições que apagam tristemente.
Quisera dominar o conhecimento anatômico,
Saberia quais partes determinar ao cortar,
Me restrinjo ao ato mecânico de leigo açougueiro,
E invoco que deceparei a jugular.
Piada de mal gosto alguns diriam,
Que importa as concepções alheias.
Será que me compreenderiam?
Pouco importa-me que assim seja.
Ato solitário, homicídio de si próprio,
Algumas culturas compreendem por normal,
Existe a condenação do cristianismo ortodoxo,
Sou ateu e que se foda qualquer religiosidade moral.
Antes de me julgarem, se recordem dos próprios atos,
Das vidas miseráveis e incompetentes,
Sou forte o bastante para decidir o que faço,
Se me mato é por ter perdido o sentido útil vivente.
Não se culpe parentes ou outros que me tem afeto,
Chegará sua vez, como a de todos os outros,
A diferença é ter agido de forma soberana, por certo,
Enquanto vocês serão conduzidos sem logro.
Aparecerão psicanalistas com teorias absurdas,
Querendo se promover ao discutir sobre mim,
Tolos que afundam em suas próprias neuroses diuturnas,
Não podem me compreender se não compreendem nem a si.
Além da compreensão individual, eu diria,
Em uníssono ao comportamento de certa coletividade,
Não mais um humano em estado de aporia,
Jaz um corpo renovando o sentido da transitoriedade.
Poupem-me dos comentários grosseiros,
As reflexões irão eclodir nas mentes eufóricas,
Alguns deixarão escapar algo no enterro,
Outros guardarão para si essa medíocre retórica.
As primeiras gotas de sangue são singelas,
Parecem um tímido orvalho de uma manhã de inverno,
Já o corte umidecido faz expor a goela,
Recordando aves degoladas em algum ato comemorativo patético.
Sou meu próprio executor, sem necessitar auxílio,
Carrasco e vítima em uma amálgama mórbida,
Evidenciando o ato de morte por egoísmo,
Com préstimos de emoções sórdidas.
Esta roupa eu sujo e talvez ninguém a limpe,
Será manchada com meu próprio sangue,
Pode ter um sentido que me auto resigne,
Simulando uma ferida, sem que estanque.
Descobri que os olhos da morte são meus,
E que o sentido é a falta de sentido,
Esotéricas palavras pra quem leu,
Realidade que outros e hoje eu, evidencio.
O sol obscurece e as sombras desvanecem,
Me adentro ao mundo como retribuição vivida,
Sem predisposições de consolo post mortem,
Ou apegos de uma esperança miserável pós-vida.
Transbordo como um cálice que inclina,
Derramando o nobre vinho sanguíneo,
Do vermelho mais sedutor, de cor viva,
Tombado por fissura, como monumento vítreo.
Sozinho venho ao mundo e da mesma forma me despeço dele,
Por mais que tivesse me servido de alguma companhia,
No momento derradeiro, solitariamente irei perecer,
Mesmo as mortes coletivas são individualizadas em cada vida perdida.
Sem deuses, me vejo diante da lógica universal,
Que escapa a minha razão e me engole por inteiro,
Onde jamais terei acesso ao que imagino ser sua sucursal,
Cabendo apenas diluir e recompor-me como uma fração de singelo centeio.
Sirvo-me de metáforas por alguma aporia súbita,
Poderia a fisiologia identificar tais fenômenos,
Mas ainda restaram pela racionalidade, eternas dúvidas,
Nada que possamos elucidar a contento.
Vivi com alegria até este momento,
Não utilizo lamúria por justificativa,
Hoje, neste ato, me compreendo,
Poucos terão a oportunidade contemplativa.
A dor foi mínina em relação ao ápice da extinção,
Minha cota foi oferecida e agora ceifo este receptáculo,
Faço parte como cada um de vocês da humana evolução,
Vivo e agora morto, comprovo a existência ipso facto.
Antes ser vivo-morto do que morto-vivo,
Deixo a vida porque assim quis, nada mais,
Não gosto de viver fracionado, prefiro morrer por inteiro,
O exemplo ficará aos que se identificam assaz.
Não sou um incentivo, mas um fato,
Nem devo inspirar romances empolgantes,
Terei um funeral muito recatado,
Alguns me terão como algo desconcertante.
Farei parte de mais uma estatística,
Reduzido a algum número desumanizado,
Compondo alguma lembrança de uma obsessão frígida,
Figura lembranda com amargor em um porta-retrato.
Se fosse em outros tempos, nem teria direito ao enterro religioso,
Isso seria motivo de orgulho a quem nunca precisou de um deus,
Mesmo sabendo que me tratariam como estorvo,
Ainda restaria a doce lembrança do suplício que infligi a estes fariseus.
Por quê? A quê? Com quê? De nada servem tais indagações,
Sou compreendido pelo que fiz e não pelos motivos evocados,
Em cada humano criamos e destruímos, provocamos transformações,
A medida de todas as coisas é compreender que não se mede um ato.