O Beijo

Os lábios, ávidos por sentir outros lábios,

Buscando aquela amálgama de salivas,

Como a resolução de um prazeroso presságio,

Cheio de desejos e recordações altivas.

O encontro de dois que se tornam um,

Unos por uma voracidade libidinosa,

Prolongados em um êxtase continnum,

Rompendo com a realidade pavorosa.

Mas ao precipitar-se para beijar,

A outra face vira-se, expondo lateralmente

O rosto com rechonchuda bochecha,

Com sua carne macia impertinente.

Os lábios intumescidos e úmidos,

Salivantes de secreções que proliferam,

Agora relegados a um rito quase litúrgico,

Onde seus ânimos mais recônditos exacerbam.

Não pude provar a tragédia romântica shakespereana,

Nem sentir o desespero de Eros por sua Psiquê,

Estava relegado a uma lacuna destarte soberana,

Era consumido por esse vácuo instransponível entre eu e você.

Fausto, sei como é perder Margarida antes de tê-la,

Agora sei a respeito da quimera exposta por Augusto dos Anjos,

Sinto-me escarrado como resto extirpardo de uma parelha,

Amaldiçoado pelo não feito, tendo como recompensa a dor do pranto.

Osíris, por ti Íris enfrentou os deuses e o reconstituiu,

Quem desejo me virou o rosto da forma mais desdenhosa,

Um Brutus que apunhala-me pela frente, de forma vil,

Sem piedade para com esta criatura que sentia-se auspiciosa.

Páris conheceu sua Helena, que importa uma guerra como a de Tróia?

Estou em terreno movediço e esta carne que beijei causou-me nojo,

Sou como uma personagem vítima de uma rapinagem na história,

Carrego selado em meus lábios o mais venenoso e corruptor gosto.

Profetizei uma Ana Karênina por influência tolstóiana,

Almejei com ternura uma Eugênia Grandet balzaquiana,

Uma desejada e saliente Capitu machadiana,

Ou a contemplação de uma Castor que animava a realidade sartreana.

Mas me foi conferida a dor de Orfeu pela desintegração de Eurídice,

A morte prematura de um Romeu rejeitado por sua Julieta,

Sem apoio que sirva de pilar provisório ou qualquer ato que o vivifique,

Seguindo errante pelo hiato que lhe proporciona a rejeição, esta nefasta sarjeta.

Assassinando pensamentos de ilusões amorosas,

Enegrecendo um coração que bate por teimosia,

Repudiando-se com injúrias das mais indecorosas,

Tendo pela solidão uma ternura que beira a simpatia.

Quase assexuado como anjos por resistência àquele ósculo,

Odiando cada outro como se fossem todos uma única alteridade,

Vivenciando uma realidade a partir de um ideal póstumo,

Sem referência do não-ser ignoro minha própria entidade.

Penso no coito simples dos não humanos,

Em cada cruzamento natural e de dominação,

Talvez se fosse vitimado por este desejo insano,

Não haveria de ser rejeitado por pudores da razão.

Teria demonstrado a ereção de meu falo enrijecido,

Acoplado àquela sensual criatura de forma voraz,

Sem receios que pudesse conter minha libido,

Ejaculando como finalização de uma catarse mordaz.

Animalescamente seduziria por imposição,

Contemplando-a ceder por vontade e excitação,

Liberando sua voracidade contida outrora,

Manifesta com esplendor de uma autêntica Pandora.

Enclausurada em um desejo que a deteria,

Como uma Persephone rendida aos encantos de Hades,

Sentindo cada arrepio que faria proclamar uma verborragia

Orgiástica por não conter a desnudez de seus disfarces.

Mas resta apenas o “se” da hipótese,

Tendo na realidade uma desdenhosa consorte,

Recusando a entrega maior de um beijo completo,

Com línguas que se entrelaçam como ato de amor secreto.

A sonoridade dos estalidos que o ato de beijar causa,

Ensurdecidos pela ruptura do sonho idealizado,

Agora transmutam-se em sussurro de uma asma

Contida em um sufocamento fleumático.

A tragédia cotidiana é a mais melindrosa,

Por não ceifar de vez o infortunado,

Aos poucos ela o consome, deteriora,

Matando de dentro pra fora como inverso putrefato.

Exercendo minha liberdade eu regurgito o gosto amargo,

Da face que me repeliu de forma polida,

Me tornarei um acumulador de egoísmo dos mais ávaros,

Sem abertura para uma aproximação mínima.

Tolice minha render-se a um romantismo tão vulgar,

Não tolerarei lamúrias que reduzem minha responsabilidade,

Se sofro é por mérito próprio de uma cara metade idealizar,

Pois sei que a realidade eu determino, construindo minhas falsas verdades.