O gelo que dói os pés
Era uma vez um menino
Isto está longe de ser uma definição concreta
Quiçá subjetiva
Era uma vez um menino
Ele passeia por uma trilha que não faz ideia de onde irá levar
Ele tem medo
Muito medo
Esta trilha é concreta
Ela existe
Ou existiu
É uma trilha que começa na base de um morro chamado Paraíso
Que nome é esse, né ?
Um morro chamado Paraíso
... e
Um menino
Não sei aonde isto pode levar
Era uma vez um menino que se viu diante de um caminho sem explicação
Uma subida enorme
Árvores, galhos, pedras lascadas
Ele pensou
Para saber o que existe lá em cima
É preciso subir
Ele realmente estava com medo
Estava só
Sozinho
Ao seu redor
Pessoas acompanhadas de seus familiares
Pessoas em festa desbravando possibilidades do mundo
E ali estava ele
Um menino
Entremeados da dúvida
Ouviu um barulho gostoso pertinho dali
Ele conseguiu identificar na hora o que era
Caminhando foi pelas pedras em direção às sonoridades ímpares de uma vida incompleta
Não
Ele não subiu o morro
Ele ouviu seu coração que dizia
Siga o som
Em instantes
Ele estava diante de uma das belezas mais belas que havia presenciado na vida
Águas translúcidas que desabrochavam pelas rochas de uma cachoeira
Aquilo o tocou, mesmo sem saber o motivo
Sentiu seu coração grato por poder olhar aquilo
Ver a olho nu algo tão magnífico
Um menino
Diante do incógnito perfeito
De uma mãe terra sábia e inequívoca
Era tão alta a queda
Mas tão alta
Como isso era possível, meu deus ?
A água não se machucava neste caminho ?
Olhou atentamente os movimentos da água e ela parecia tão fluida
O caminho pelo qual ela transpassava era divino e cruel
Idas e vindas
Nunca havia chegada
Ele voltou pelo caminho que havia feito e se deparou novamente com a trilha que levava ao topo do monte
Ele sabia, ou melhor
Ele sentia . . .
Ele sentia que subiria, só não sabia como
O início da trilha era um barranco
O início
O final, somente deus o sabia
Quem é deus ?
Ao ouvir essa pergunta das águas translúcidas
Ele impulsivamente pisou na primeira pedra que levaria ao olimpo
Estar em meio à natureza é algo incrível
Independente para quem
Há os céticos que veem grama, flores e, talvez, se muito, raízes
Há os espirituais que sentem a divindade falando com eles
Um menino que não sabia quem era e para aonde iria
O que o impulsionava ?
O que o movia ?
O caminho era, em partes, tranquilo
Encontrava um ou outro obstáculo
Desviava de possíveis buracos camuflados
Subia
Ia
....
Seus olhos avistam uma barreira
O que é isso ?
Alguém quer me impedir ?
O que ele enxergava era uma subida muito muito muito íngreme
Quase totalmente vertical
E alta
Feita de pedras
Rochas
De dentro das rochas saiam estruturas em metal que serviriam de apoio às mãos e aos pés na subida
Este foi o primeiro momento que racionalizou desde a inconstância de seus pensamentos antes de iniciar a subida
Seus olhos olhavam para algo que ele não sentia ser capaz de alcançar
Mas seu coração implorava por misericórdia de si mesmo
Seu coração queria subir
Quantos metros de subida tem aqui ?
Um passo em falso e ele se machucaria feio
Se viu desmoronando e caindo ao pé do morro, agora incapaz
Seu coração, cansado de aguardar, bateu mais forte e com este impulso foi a mão direita que segurou a primeira estrutura de metal
O que aconteceu em seguida passou como um vendaval
Intensamente
Ansiosamente
Rapidamente
Chegou a um lugar que para continuar a subida era preciso segurar uma corda que estava presa no caule de uma árvore
Ele olhou para cima
Ele olhou para baixo
Já estava na metade
Ou pelo menos acreditava estar
Com uma confiança inenarrável, puxou a corda com uma delicadeza lindíssima e chegou em terra firme
Terra firme ?
Terra
Olhou novamente pra baixo e lhe passou pela cabeça a arquitetura de como iria fazer para descer
Aiai
Um menino de all star amarelo
Isto é algo tão interessante
Um amarelo solar que o movia por entre os arbustos, espinhos e rachaduras vulcânicas
O que significa amarelo pra você ?
Para o menino era um sinal de que precisava parar para respirar
Sua respiração estava ofegante
Era tão forte a sensação que ele emitia sons ao respirar
Inspirava profundamente buscando preencher com oxigênio cada partícula atômica do seu ser físico
Expirava profundamente soltando suas dores e decepções
Ali era um espaço de cura
Era chegada a hora de continuar
Se uma subida é tão árdua, por que percorrê-la ?
Qual a graça disso ?
A graça se dava pela sua existência pertencer àquele lugar sinistramente familiar
Ele se conectava com a base-terra-mãe e sua alma se elevava tanto, mas tanto...
... que o único caminho possível era continuar subindo
Após se apoiar em uma última pedra pra subir, ele acreditou que pudesse ter chegado no topo
Mas era estranho porque tudo o que ele enxergava era mato para todos os lados
Pensou que poderia lá de cima observar a cidade, ser um observador completamente desconhecido de tudo e todos
No entanto, seus pés se moviam naturalmente
Para onde estão me levando ?
Mas não ouvia resposta alguma, somente a sensação de flutuar por uma floresta total
Neste momento, ele se lembrou de seu avô e da época de menino
Menino ?
Mas ele não é um menino ?
Era um menino ?
Em que ponto do tempo estamos ?
Quem é este menino?
Hoje ele podia compreender muitas coisas por que passou e amá-las
Mesmo em suas dores mal curadas
Enquanto flutuava pela mata sem fim
Olhou para uma de suas mãos
Ela estava suja de barro
Mas era tão linda
Na mão ele enxergou a si mesmo e as lágrimas lhe vieram do céu
Lágrimas de alegria, orgulho e satisfação
Um menino que amava com as mãos
O horizonte lhe era simplesmente uma lacuna
Para todos os lados que olhava, enxergava vegetação
As lágrimas do céu molhavam aquele verde-vida e alimentava as trilhas secas do inverno
Um arco-íris se formou em uma das frentes e sorriu para . . .
. . . um menino que amava com as mãos
Talvez tudo isso tenha se passado em sonho
Não sei
Mas a próxima imagem que ele enxergou foram formiguinhas bem miúdas, de diferentes cores, se moviam para todos os lados
Ah, não
Ele ria deliciosamente
Não eram formiguinhas
Era a cidade lá de baixo
Aquela mesma que ele esteve agora há pouco
Espera aí ...
Seria o olimpo ?
Seria o céu ?
Teria poderes mágicos ?
Que lugar encantador . . .
E só . . .
Ele podia enxergar tudo, como um narrador onisciente de uma aventura pela selva, mas estava sozinho
Embebido pelo sol radiante de um céu estrelado
Ele se sentou na beirada da rocha
Dali via um cenário que não conhecia nem pela televisão
O morro a frente . . .
Quantas espécies de plantas existem ?
Quantas tonalidades de verde podem existir ?
Mas não só verdes
Lilases
Amarelos laranjas limões açaís amendoins manguezais luzes silhuetas poesias infinitudes eu estou aqui . . eu existo . . . os raios do sol formam desenhos no meu rosto
a esperança se materializa em sonoridades de pássaros
os meus sonhos mais profundos se tornam realidade e absolutamente nada faz sentido
que coisa mais linda e louca !!!
nada faz sentido.. nada nunca fez sentido... e nunca precisou
eu não estou aqui hoje ?
eu estou aqui hoje
sedento por água doce de bem-te-vi
sedento por me jogar naquela água daquela cachoeira que está lá embaixo
sedento por escrever poemas, poesias e poéticas
nada nunca fez sentido
uma oração ao esplendor da atmosfera que habita em mim um caos da ciência fidedigna e incompleta-rreta um balbucio de sono de dias acumulados sambas rocks violas
SER ARTISA
EXISTIR
Um menino que talvez estivesse sonhando acordado
E sonhando muito, pelo visto
Olhava para a cidade lá embaixo e percebia a dicotomia pequeno-integral-frágil que era
Em meio a perguntas, dúvidas e admirações
Ouviu vindo de muito perto uma sonoridade muito familiar
Levantou rapidamente e começou a correr
A direção era as mãos, os pulmões e os dedinhos dos pés
Passou por uma abertura em uma árvore que o fez lembrar de um poema que conheceu há poucos dias sobre um rato
Mata
Selva
Trilhas-sens-fins
Até que seu coração parou por alguns instantes
Neste ponto até poderíamos pensar na possibilidade de ser um deus
A noção de tempo-espaço sumiu da concretude e se transformou em uma linda canção cuja harmonia fazia o corpo dançar
Dança gostosa
Tão cara
Tão rara
Tão rica
Um menino dançava deliciosamente
Os braços, pernas e cabeça se mexiam como se tivessem vida própria
Uma vida única, singular, independente e querendo cada vez mais
Mais
Mais o quê ???????
....
Seus olhos enxergaram a fonte mais alta d’A Cachoeira Paraíso
Não havia percebido até então, mas estava descalço
Apesar de que poderia jurar que estava de all star amarelo
Conseguia sentir gaia sob seus pés e tudo se integrou
Um sopro de vento fez esvoaçar seus cabelos e o fez rir profundamente
Risada gostosa
Risada que diz
Lá vou eu
Foi então que ele saiu correndo em direção à fonte da cachoeira
Seus pés tocaram aquela correnteza gélida
Meu deus
Que sensação encantadora e pavorosa
Gelo gelo gelo gelo gelo gelo gelo
Absolutamente gelada a água
Absurdamente
Dolorosamente
Integralizadora total dos corpos celestes
Um menino olhou para os seus pés que estavam mudando para uma coloração pálida, mas ele não se importou
Os pés estranhamente o agradeciam por isto
Um menino que amou com as mãos
Um menino dançava deliciosamente
Um menino que estava só
Um menino