Carnificina

Não devorarei minha própria carne nesta quinzena que você diz ser a do amor. Até porque afinal, quando restam apenas os ossos é sinal de que o banquete já chegou ao fim. Estou exausto, com falta de pedaços de mim desde quando resolvi entregar-te um anel de entrada. Meu novo sentimento, do pouco que restou, é a dor já que tudo foi servido a ti.

Você me entregava um pouco do que tinha enquanto me entreguei por completo. Entreguei minha razão que você devorou com anseio e selvageria. Nunca havia comido um córtex tão belo e racional. Te servi em forma de protesto de paz, sem saber o quão caro me custaria. E uma vez deliciado, seu prato preferido se torna o motivo de despejar sua fúria desmedida em mim.

“Eu quero mais! Eu quero mais! EU, EU, EU QUERO MAIS!”

E te entreguei.

Quando dei por mim, eu mesmo me alimentava dos restos que escorriam de sua boca. A fome nos transformam em pessoas irreconhecíveis, e em algum momento, nos deparamos com um cadáver quando a luz dos pratos vazios refletem a nós mesmos. Mas não era de seu interesse que eu enxergasse a figura cadavérica a qual me tornava. E nesses momentos retirava de si um pedaço pequeno e visível de seu coração para que o prato tivesse algo. Para que a fome fosse saciada e a imagem perdesse a importância, pois o coração sempre é o prato principal.

Mas existe algo diferente em mim agora e meus ossos desnudos tem conseguido se levantar. O desespero de viver surge, floresce e implora por liberdade. Nesta quinzena, não mais serei seu prato e meu lugar estará vazio. Sairei daqui, sem forças, exausto e nitidamente incompleto. Manco, depressivo e faminto. Se não há mais carne disponível para nos saciar é o momento certo de me retirar.

E em seu sanguinário sorriso, ouço o lamber dos dedos final.

Marçal Morais
Enviado por Marçal Morais em 28/04/2024
Código do texto: T8051794
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