ENEM 2021
No último domingo, pouco mais de 3 milhões de estudantes brasileiros realizaram a primeira prova do Exame Nacional do Ensino Médio. Dada a quantidade de alunos no Brasil, o número não é nem de longe um exemplo ou motivo de orgulho para esse país, que é o menor desde 2005. Há de se considerar também, o percentual de alunos evadidos em razão da crise nacional gerada pela pandemia de Covid-19, que registrou recordes e evidenciou um descaso exorbitante no âmbito da educação, por parte do atual governo e das instâncias públicas responsáveis por esse pilar que é o sustentáculo máximo acerca do futuro da nação: o sistema público de ensino. O que escrevo não chega nem perto de ativismo político, trata-se apenas da realidade dos tristes fatos, pois de balbúrdia quanto à prova, já estamos todos fartos.
Essa prova, que é uma das principais portas de acesso para o ensino público superior no Brasil, evidenciou um retrocesso. Não somente a nível pedagógico, mas também a partir do pressuposto de logística e de organização para que a aplicação da prova ocorresse com segurança e honestidade. Entre pedidos de demissão de funcionários do INEP, autarquia que ainda guarda consigo relativa autonomia, e discursos de que a prova estaria a “cara” do governo, sem aquelas perguntas sem sentido de outrora, os estudantes tiveram motivos suficientes para se surpreenderem com textos de Engels, um dos expoentes do socialismo científico, e com a análise de música “Vida de gado”, cuja resposta exigia a criticidade ao associar a letra com a passividade política. Não termina por aí a polêmica… o tema da redação, que contou com forte caráter social, desafiou os estudantes a escreverem sobre o acesso à cidadania vinculada ao registro civil. Propor o pensamento sobre essa temática tão pertinente beira a ousadia nos tempos em que vivemos, no qual a alienação está sempre à espreita. Utilizar a bagagem sociocultural para discorrer sobre invisibilidade civil e ainda mais, entender o aspecto interventivo da escrita a partir de uma das competências da prova, é um testemunho de que o ENEM não é obra de um governo falido, muito menos fruto de rivalidades partidárias de esferas que se situam em um plano muito distante dos jovens brasileiros, sobre os quais a esperança da mudança paira. O ENEM é dos brasileiros, é dos professores e educadores engajados. É daqueles que realmente se comprometem com a formação integral de cidadãos. Até poucos anos, o fim último dessa prova era avaliar o nível de aprendizado dos estudantes que concluíram o ensino médio, sendo dessa maneira, um instrumento para que o governo pudesse medir a própria eficiência no segmento da educação. No entanto, o que hoje se verifica, é que a prova tem servido de mecanismo político na obtenção de outros fins, como a dominação política, se despindo assim do motivo pelo qual ela um dia surgiu.
A prova não foi de todo perfeita, nem o sonho do estudante dedicado. Sabemos que o grau de subjetividade é inerente às ciências humanas e permite diferentes prismas relacionados a um mesmo fato. Porém a prova carrega um rigor científico que deve ser respeitado. É difícil se manter em um patamar de neutralidade ao se elaborar as questões, o viés sempre penderá para um dos lados, e é até aceitável que assim seja, desde que as fronteiras entre conhecimento e opinião estejam muito bem delimitadas. Chegam a ser contraditórias certas posturas de figuras de influência, é interessante atentar-se a elas principalmente em situações como essa, que revelam toda a ambiguidade quando a pauta do saber entra em cena. Se a propaganda do governo camufla-se entre cores e símbolos em um ideal de patriotismo quase policárpico, a pergunta que fica é: então por que negar a própria história? Se é tão nobre a demonstração de orgulho pela pátria-mãe, qual a necessidade de se apagar da memória coletiva tantos acontecimentos que foram imprescindíveis na consolidação do país que hoje se ergue, hein? A letra é clara e afirma “Paz no futuro e glória no passado”.
Certamente, a abordagem das questões de Linguagens e Ciências Humanas costuma ser mais polêmica, tendo em vista a vasta gama de conteúdos e as possibilidades de exploração daquilo que, em tese, é aprendido durante o ensino médio conforme a Base Nacional Comum Curricular. Essa simetria de aprendizagem é fundamental na regularização do ensino, mas quem está realmente apto a definir os assuntos e temáticas que obrigatoriamente devem ser discutidos em sala de aula? Será que esse processo não é arbitrário na medida em que relega certos tópicos ao segundo plano? É muito fácil para o topo da hierarquia do poder manipular os conhecimentos dos jovens e até incitá-los a responder de determinado modo, e com determinada estrutura de pensamento, o que molda a capacidade de reflexão e repreende o questionamento. Aos poucos e involuntariamente, a mente se aconchega na armadilha da censura, que gerencia aquilo que o Governo julga uma verdade absoluta baseada em mera ideologia. Com essa prova, podemos aprender muito. E não é necessário tentar respondê-la para descobrir algumas verdades sobre a mesma. Basta analisar a repercussão e os falatórios sensacionalistas de autoridades com o intuito único de gerar ibope e atormentar os alunos sem necessidade, que no fim, ainda são os mais prejudicados.