Chat anônimo
Me pergunto o que Sócrates diria, se ele vivesse em nosso tempo. Ou para ser mais específica, o que ele pensaria sobre recintos anônimos virtuais nos quais se pode ser quem quiser, desde o mais transparente defensor de seus valores próprios, até o ser mais entediado que não tem nada para fazer além de consumir suas tardes e noites com outros estranhos de todos os cantos possíveis.
A era da tecnologia, nos possibilitou criar conexões entre pessoas e pensamentos, que até então não passavam de um futuro longínquo, à margem de uma utopia. Na contrapartida do discurso de que por outro lado, o mundo em redes nos tornou seres mais superficiais e ansiosos, sempre em busca da agilidade prática em nossas relações e afazeres, ergue-se suntuoso, o argumento de que cada vez mais, as pessoas veem a internet, como um instrumento incrível para conhecerem a si mesmas a partir da comunicação com o outro, mas que convenhamos, nem sempre é a melhor intencionada…
Desde crianças, nossos pais sempre nos alertavam com aquele tom de superioridade que ecoava também preocupação: “Quando estiver andando sozinho na rua, não fale com estranhos”. Nos dias de hoje, não basta que os pais digam isso a seus filhos, já que muitas vezes, elas têm o perigo nas próprias mãos, sem a necessidade de sair de casa para estar face a face com a maior gama heterogênea de indivíduos, opiniões e interesses.
Interessante notar, que o distanciamento e até mesmo a ruptura de muitas relações que existiam em um passado não tão distante, não eliminaram nossa característica intrinsecamente humana, que é a convivência em grupos, e a necessidade latente de pertencimento e interação. Principalmente para os tímidos, chats anônimos viraram um bálsamo. Inaudíveis pela maioria, mas não menos necessitados da criação de vínculos, muitos encontraram em oceanos virtuais de anônimos, uma boa chance para criar amizades e até mesmo tentar a sorte com relações amorosas. O jovem adolescente, naquela fase em que se torna mais consciente de si (ou que em tese deveria) e introspectivo ao se conhecer melhor e descobrir seu lugar no mundo e suas preferências, até um pouco assustado com as exigências sociais ao comparar-se com seus colegas, não hesita em considerar o chat anônimo como um portal para um possível relacionamento. O contraponto está aí, uma vez que ao manter tais relações, o indivíduo se priva de conhecer o outro em sua totalidade, visto que a seletividade quanto às informações que queremos transmitir, nos torna nada mais do que perfis idealizados que criamos de nós mesmos, adaptando a nossa imagem àquilo que queremos com o outro, a partir do que ele pode nos proporcionar. Assim, retornamos ao platonismo de nossos “amores”, endossados por marcações do ser amado em belas publicações de páginas de poesia no Instagram, com uma pitada de anunciamento ao mundo: “em um relacionamento sério com…” no Facebook.
A propósito, voltando ao assunto, a verdade é que dificilmente a proposta inicial de criadores de sites de conversa anônima é levada a sério pelos usuários da internet. Internet seria isso? A possibilidade de extrapolar nossa identidade até certo ponto? Há regras, leis, burocracias de IP, copyright, anti-cyberbullying, e cancelamentos? Sim, sim, existe tudo isso. Mas quando o assunto é ser quem se é, o peso de um julgamento é muito menor, o medo do ataque é atenuado pela opção “bloquear”. Se acabei de trocar algumas poucas palavras com um completo desconhecido, mas não gostei do seu jeito, não preciso nem ser minimamente educada em me despedir, posso simplesmente clicar no botão “encerrar”. Pronto, tudo termina entre mim e alguém que provavelmente nunca mais voltarei a encontrar em minha mais breve existência como ser humano na Terra. Talvez esse seja um dos motivos da infinitude que a internet aparenta, sem começos substanciais e sem finais decentes, o que existe nunca se apaga, permanece no limbo desse sistema.
Imagine, escrever uma mensagem a alguém que se esconde à sombra confortável do anonimato na internet, é a forma mais ligeira e desprovida de toda a emoção que é escrever uma carta e jogá-la ao mar com a esperança de que alguém a encontre. Não precisamos fornecer nada, nem nosso nome verdadeiro, muito menos números, senhas e outros dados que vários sites já nos pedem constantemente, em uma verdadeira guerra para angariar mais perfis. Não, no mar as coisas não são assim, a garrafa contendo aquela carta é tão pacífica quanto ao oceano que a envolve, bem diferente das ondas agitadas e plurais que movem os fóruns e chats repletos por um oceano de desconhecidos. E nós, não passamos de uma gota à procura da enseada que melhor nos acolha. Contudo, nunca saberemos se a carta ao mar chegará um dia até alguém. Talvez ela se desintegre dentro da garrafa, quem sabe ela seja o motivo da morte de algum animal marinho ou ainda, desapareça para sempre no fundo dessa imensidão salgada. É aí que reside a beleza da incerteza, o famoso baile “potencial de ser, mas talvez jamais seja”. E é isso que tantas vezes é escasso em chats desses: a espera, a impossibilidade, o prazer da conquista, a terra firme.
Se há ressalvas e críticas a serem feitas? Demais. É evidente que esses ambientes das telas costumam perder sua essência. De uma para outra, transformam-se de um espaço de trocas saudáveis, em verdadeiros prostíbulos virtuais, infelizmente. Transmutam-se em um local de pornografia barata, que vez ou outra ofendem àqueles que frequentam esses chats sem grandes aspirações devassas. Claro que se fossem melhor explorados, esses sites poderiam ser substituídos por recintos maravilhosos de encontro com o outro, aprendizado, e trocas de conhecimento e experiências, coisas que só se vê hoje em dia, em continentes mais restritos desse planeta densamente povoado, chamado Internet.
Todos os dias, muitas pessoas se conhecem, seja pessoalmente ou por meio dos recursos que a internet proporciona. Não é impossível encontrar o grande amor da sua vida em um chat anônimo, mas a chance de se iludir é extremamente alta, sem contar nos perigos de nutrir algo que nossa mente criou para nos enganar, o mundo não carece de pessoas ruins, não é preciso ir muito além de algumas teclas para estar diante do perigo, preciso concordar com tantos pais. Existem porém, exceções que não são tão raras assim, por vezes se entra em um site de conversa com estranhos, e se percebe que para o outro no antípoda da tela, também nos encontramos nessa mesma categoria: estranhos, anônimos. Antes de qualquer outra coisa, profissão, idade, situação financeira, somos sobretudo estranhos, sem outra hierarquia de grandes interesses. Sorte de quem encontra alguém raro e instigante, dessas criaturas que não se encontram em qualquer esquina, com quem fazemos questão de manter e cultivar o contato pessoal, e a quem o acaso (ou o destino nos apresenta), a quem convenhamos orgulhosamente chamar de amigo.
Outra espécie muito fácil de notar nesses chats, são aspirantes a escritores, que sem motivos conhecidos, inventam codinomes dos mais variados. Às vezes nos deparamos com escritores até já completos, que não somente inventam nomes para chamar de seus pelo outro, como também recriam e mudam sua própria personalidade, esses são verdadeiros amantes da sexta arte, a chamada “Síndrome Pseudonômica de Betinho Caeiro”. Tão involuntariamente e por força da aleatoriedade, nos jogamos nessa massa de pessoas que por vezes, só usam esses chats como uma válvula de escape onde podem conversar sem compromisso, com qualquer um, ou simplesmente desabafar sobre a vida com um desconhecido que a ouça casualmente. É disso que o mundo precisa, pessoas que saibam ouvir sem julgar e sem pedir nada em troca, e a internet pode ser um bom lugar para treinar esse lado ouvinte. Confesso que não sou tão fã de hipóteses que podem estar a um passo do anacronismo, mas imagino que Sócrates apesar de, quem sabe, um pouco decepcionado com os rumos que a humanidade tomou e com as balbúrdias das redes, não deixaria de semear o saber cristalino até em lugares inesperados e encobertos pelo anonimato.