O Homem cordial pandêmico
O conceito de homem cordial, proposto por Sérgio Buarque de Holanda, está relacionado ao comportamento afetivo que movia as relações no Brasil colonial. Segundo o autor, o homem cordial é incapaz de se desprender dos laços familiares, e age ainda, destituído do devido rigor que as circunstâncias exigem. Trazendo a ideia de homem cordial para o Brasil contemporâneo, pode-se facilmente identificar que o conceito se manifesta na negligência às normas de funcionamento social, a partir do momento que em que o sujeito age de modo irracional, relegando a ética ao segundo plano e enfatizando o teatro da generosidade, que é usada como pretexto. Assim, o lado negativo de sua conduta é abrandada pelo “agir com o coração”, ou nesse caso, pela justificativa emocionada acerca do medo e da insegurança que o contexto da pandemia proporciona. A partir da informação de que um indivíduo está se aproveitando de sua posição social privilegiada, fica nítida a sua tentativa de transformar seu status social em um mecanismo para burlar a regra, com o fim de conseguir tomar a vacina, o que claramente reafirma o discurso de que o seu merecimento é maior quando comparado com os demais, e se insere no “jeitinho brasileiro”, caracterizado como uma maneira de o sujeito buscar resoluções simples para problemas que podem ser ainda mais complexos, manejando as situações e tornando-as mais favoráveis conforme seus interesses.
Somado a isso, se correlaciona o abismo das desigualdades que se tornaram ainda mais salientes no contexto da pandemia, e agora na fase da vacinação, o que dialoga com o fato de a cordialidade não perceber tais disparidades, uma vez que a pessoalidade é um de seus elementos. Do mesmo modo, ao querer antecipar sua vacinação em benefício próprio ao invés de seguir o mesmo caminho dos demais cidadãos, uma outra característica do homem cordial se faz presente, que é a incapacidade de distinguir entre o meio público e o privado, já que adentra com uma intenção privada e particular o espaço público, favorecendo-se da vacinação do povo, que ainda caminha a passos lentos. É interessante notar que existe uma contradição entre aqueles que ocupam os altos postos de trabalho, que supostamente deveriam agir na defesa da sociedade, e o comportamento dos mesmos, marcado pela irresponsabilidade e pelos atos na contrapartida das normas, o que mais uma vez, exemplifica a ruptura com a ideia de progresso coletivo, ao proceder de modo não somente individualista, mas sobretudo, egoísta. Além de situações como essa, são recorrentes outros casos, também referentes ao acesso à vacina, nos quais homem cordial marca sua presença, por exemplo, quando profissionais da área da saúde conseguem agilizar o processo de vacinação de seus familiares e amigos, o que mais uma vez, evidencia a camaradagem e a dificuldade em se desvincular dos laços familiares. Assim, o homem cordial se apresenta: impaciente com as longas filas, desprezando mesmo que de modo sutil o sistema democrático que rege a sociedade, e atento às brechas que oportunizam desde as menores até as mais expressivas falcatruas.