Ânsia da escrita
Aquela fração de hora que precede o trabalho do escritor é um momento de reconexão consigo, de afirmar para si mesmo com palavras subentendidas “eu consigo”, de busca por vestígios de inspirações escondidas nas veredas profundas de sua existência e na espera do fluxo de consciência tardio. A primeira frase costuma ser um parto, a primeira oração acontece no primeiro momento em que as linhas deram a luz ao pensamento contido. Não é fácil ser longínquo sem se perder de vista, não é simples abrigar o infinito e ser parte fundamental dele, sem se deixar ganhar pela tentação do labirinto cujos caminhos se formam instante após instante. Palavra doída e minuciosa que cambaleante dá luz ao texto, tamanho jorrar de sentimentos daquele que se sentiu na obrigação de lacrimejar em tinta, os felizes tesouros que ganharam o registro no papel. Começar até pode ser árduo, mas o entendimento de que existe um início e um final para tudo, se encarrega de conduzir a palavra até o sucinto e certeiro ponto final. Há certas coisas que são muito mais fortes do que a possibilidade de um pensamento desorganizado e mal-resolvido de seu rumo. O ímpeto da escrita vence as barreiras da inércia e vibra como potência criadora, vivificando toda réstia de monotonia aparente. Escrever é estar em um constante estado de alerta, é resistir ao impulso de se deixar levar pelo cansaço do mundo. É ser um pescador em águas tranquilas sem se abater pelo sono, na certeza de que a recompensa está à sua frente e que pode emergir em qualquer minuto, e ao mesmo tempo, ser o peixe radiante e sonhador que mergulha em seu universo único e imprevisível. Nascer com um dom, lapidá-lo exaustivamente para que seu efeito ressoe em cada canto, mas cessar por breves intervalos de tempo e esquecer de alimentá-lo, é criar uma encruzilhada muito original, lar da retumbante letargia que pode demorar a desaparecer, que pode desprezar a força criativa do ócio e provocar um estranho e irrevogável esquecimento. É muito material amorfo acumulado perto dos recônditos desconhecidos da alma, tal matéria sem cor nem forma espera ansiosamente por mãos que possam esculpi-la e transformá-la em símbolo, cor ou melodia. Aquilo coça, não perde a primeira oportunidade de vir à tona. É sobretudo, lidar com a obrigação de ser quem és por meio da manifestação artística dos seus sentidos. É sobre chegar ao fim da linha e ser perpassado pela sensação que se estende muito além daquele simples trovejar de ideias que geraram um trabalho comprido. Mais do que isso, é sentir que o trabalho está cumprido, e que voltei a viver o que nasci para ser.