O último suspiro (escrito em 22/06/2014)
"Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre." Ariano Suassuna.
Novamente deparei com a face da morte. Um ente querido, muito próximo, expirou recentemente. E, por mais doloroso que seja, nenhuma das vezes foi igual. Não houve padrão, nem nenhuma semelhança entre os desenlaces. Dessa vez, vi de perto a vida se esvair do corpo. Presenciei o último suspiro da pessoa. É uma sensação indescritível. Não importa quanto tempo a pessoa se prepare para esse momento inevitável. Quando ele chega, a potência da sensação inebria e te domina. De repente nada faz sentido, eu mesmo não sabia o que queria, nem o que pensava. Perdia o contato com o mundo real. Diferente do nascimento, a morte é um evento que possui uma carga emocional negativa muito intensa.
Minha tia era a filha mais nova da minha avó, porém lutava contra um câncer muito agressivo a mais de um ano. Era uma mulher otimista, sempre muito brincalhona e extrovertida. Era a minha 'tia moleca'. Por ser a mais nova, era a mais próxima dos seus sobrinhos. Outro fato que ajudava nessa proximidade é que ela não tinha filhos. Uma frustração que ela levou consigo, por ter sido negada essa faculdade. Entretanto tambem muito orgulhosa, não gostava de transparecer suas fraquezas. Creio que essa tenha sido essa vaidade a sua maior inimiga. Depois de descobrir a doença, preferiu se isolar para tentar vencê-la e continuar sua sina. Mas não foi o que aconteceu. Seu corpo enfraqueceu demais, ficou desnutrida e desidratada, quando descobrimos o que havia acontecido, já não havia tempo para recuperação.
Mesmo assim, sua irmã, lutou de todas as formas para resgatá-la, dar-lhe assistência. Juntamo-nos à sua volta para tentar reviver a união dos tempos de outrora. Foram tempos difíceis para todos nós. O esforço que fazíamos para ignorar seu corpo frágil e debilitadíssimo, era demasiado para todos nós. Eu mesmo, após as visitas, derramava-me em lágrimas ao sair de sua presença. É uma sensação devastadora, exaustiva.
No hospital estávamos todos ao seu redor. Ela não respondia mais aos estímulos exteriores. Parecia-me, que não estava mais ali. Não havia consciência. Estranhamente ela não fechava os olhos, não piscava, aquilo me incomodava. Perguntei a enfermeira o por quê daquela situação, ela não soube dizer (ou não quis), mas garantiu que ela ouvia a todos ao seu redor, a audição é o último sentido a falhar. Minha esposa comentara sobre o estado de coma. Seus olhos estavam fixos no horizonte, sem brilho. Somente a respiração ininterrupta de um corpo que teima em lutar por um fio de esperança, acho que o tal 'instinto de sobrevivência' que todo ser vivo possui. De repente, seu olhos se moveram, em minha direção, tenho certeza que ela me mirava, sem perder tempo eu acenei e falei meu nome pra ela, ela esboçou uns grunhidos, pareceu responder-me, imediatamente eu listei as pessoas que ali estavam, disse-lhe que ela não estava sozinha, chamei todos para que ficassem dentro do campo de visão dela. Mas demoramos muito, seus olhos perderam novamente o brilho, voltou para o nada. Não nos restava muito o que fazer. Queria ver um médico, enfermeira, sei lá, alguem que me dissesse que ela ainda tinha cura. Que ela voltaria pra casa, recuperaria a saúde e voltaria a ter uma vida normal. Um milagre.
Esse sentimento egoísta, que teimamos em chamar de 'esperança'. Que vida seria essa, com tantas limitações, tantas dificuldades, com tal fardo para todos? Deus sabe o que faz.
Um organismo fraco, cansado de lutar sem condição alguma para manter um corpo sem musculatura, sem sentidos não demorou muito e sua respiração foi ficando mais espaçada, mais fraca, até que parou definitivamente. Todos desabamos. Não é fácil, não é fácil.
Chamamos a enfermeira, por sua vez mandou chamar o médico. Este, após procurar por qualquer sinal de pulsação, mandou buscar o cardiograma para certificar.
Foi-se uma vida, 62 anos, muitos amigos, muita história.
Propositadamente deixo a margem o lado espiritual, em respeito a pessoa. Independente da sua inclinação, atenho-me ao que ela sempre representou pra mim: minha tia alegria.
Um beijo, descanse em paz.