Tempos de Ouro- MEMORIAL DE INFÂNCIA
Alguns dizem: que o transcorrido é algo inóspito, deleitado em sepulcro, e ao presente sucumbido. Proferem que é extremamente nocivo aos nossos ideais futuros, onde residem inúmeros conflitos, com casos mal resolvidos e metas que não foram cumpridas. Mas como hei de virar as costas para um tempo tão voluptuoso, embutido em verdades tão intensas? Como poderei cerrar os meus olhos para uma Era responsável por moldar toda uma vida? Como poderei extirpar, de minha vasta memória, as estórias vividas dignamente a cada manhã que se erguia? Não posso, e não quero sepultar a essência do meu ser! Aqui estão alguns dos acontecimentos que marcaram intensamente a minha vida. Embora alguns sejam tristes, ainda assim permanecem vívidos e significativos.
Vejo-me, aqui novamente, deslizando uma simples caneta de cor preta sobre o branquíssimo papel, e expondo vivências verídicas a todos que porventura vierem a ler tais escritas. Quase toda a hora alguma coisa decorrente do dia a dia me faz deleitar sobre os acontecimentos de outrora. Em um dia desses, ao passar próximo às escunas de passeio que vivem ancoradas sempre em algum cais, não contive a emoção ao lembrar-me de tantas coisas que vivi. Quantas lembranças daquela terra acinzentada debaixo da garagem do tradicionalíssimo restaurante. Ali, eu permanecia por horas e horas vigiando os carros pequenos que chegavam a todo instante. E nessas horas longas o frio e fome me castigava demais, mas eu tinha os meus artifícios para tais situações. Pertinho de onde eu ficava havia uma antiga castanheira no qual eu saciava a fome. Com algumas pedras eu derrubava as castanhas amarelas, que por sinal eram deliciosas. Também se podia comer as secas, e para isso só bastava quebrá-las. Em relação ao frio eu me virava atrás das colunas, que abrandava um pouco os ventos gélidos da noite. Eu morava bem ao lado da garagem, e algumas vezes ia em casa pra descolar alguma coisa pra comer, ou um cafezinho. Mas quase nunca tinha nem uma coisa nem outra. Eu também evitava deixar o estacionamento pra não correr o risco dos donos dos carros não me verem, e respectivamente não me pagarem. Pra acabar um pouco com o tédio, que por sinal era constante, eu trazia de casa um frasco de desodorante cheio de água, e sobre o chão eu desenhava diversas figuras. Também adorava escorregar nos corrimões lisos do restaurante, mas alguns garçons faziam vista grossa e eu terminava a brincadeira. Uma das coisas que mais gostava era quando juntava alguns cozinheiros como Rogério e Daniel, o sobrinho do Osmar Peixadas Luiz Carlos, Nafta ( que também tomava conta dos carros, e morava num quarto no estacionamento), o garçom Aílton e meu irmão Adriano, para brincarmos de bobinho com uma surrada bola de futebol. Hoje eu não consigo imaginar uma criança de nove anos passando por essas mesmas situações, mas eu passei de forma natural e fui muito feliz.
Em algumas noites Nafta tomava conta dos meus carros pra eu poder jantar em casa. Geralmente a janta era umas dezoito horas, bem cedo. A mãe preparava o nosso delicioso jantar: arroz, feijão com pedacinhos de cebola, polenta, uma salada com tomate e pepino, farofa, e um apetitoso ensopado de galinha com quiabo. Era um cardápio muito bom a considerar os tempos de vaca magra. Mas como era sábado, papai tinha feito uma pequena compra. O meu pai nessa época trabalhava feito louco para suprir todas as necessidades de nossa família, mas nem sempre conseguia. Não eram poucas as vezes que comíamos somente o trivial. Quando percebia que as condições estavam precárias, que não teríamos muito o que comer no almoço por exemplo, eu tomava a frente da situação indo até aos fundos da casa para pegar a minha vara de pesca. Desenterrava muitas minhocas na horta, e rumava para a beira do mar. Às vezes, eu chamava a minha irmã caçula Katia. O ponto preferido era no cais da escuna Monte Santo, que não tinha muito movimento de pessoas devido a baixa temporada. Em algumas vezes os responsáveis pelo navio trancavam a entrada, e nesse caso a gente ia pescar perto da casa de João 500. Como bom pescador, sempre levava pra casa muitos peixes: corocas, zebrinhas, xixarros, sabonetes (esses eram adocicados demais), e as deliciosas piquiras. Nos feriados e época de verão, os turistas nos cercavam com olhos curiosos e perguntas pertinentes como: que peixe é esse? Esse lago é fundo? É doce ou salgada essa água? Vocês não temem cair nessa água? Os seus pais deixam vocês pescarem sozinhos? Nossos ouvidos eram bombardeados, mas não ligávamos nem um pouco e ríamos das perguntas engraçadas. Em dias quentes, eu pulava nas águas turvas e gélidas desse imponente mar juntamente com alguns amigos como Fabinho e o seu irmão Tetel, Mauro e Rodrigo Baleia. Íamos boiando no embalo da corrente marítima até ao mercado de peixe do Toquinho. Quando chegávamos lá, a gente voltava a mil por hora e repetíamos a travessia. Tínhamos pouco mais de doze anos, e isso de fato: era algo pra deixar os pais de cabelo em pé! Mas não era o que apenas fazíamos. Com a construção da nova ponte, criou-se um enorme arco de ferro sob a mesma, e alguém teve a excelente ideia de pôr um balanço de mão a uns dez metros do início. Como os barcos passavam frequentemente, havia sempre um lá embaixo para avisar. Mas certo dia estávamos todos pulando de cima da ponte: uns de cabeça, outros de pé, uns de granada... Quando um colega nosso pulou pela última vez de sua curta vida. Nos primeiros minutos achamos que ele estava se escondendo por de trás das ferragens, e depois de umas duas horas começamos a pensar que tinha ido pra casa sem falar nada com ninguém. Como ele morava em um bairro um pouco distante e telefone residencial era algo muito difícil de alguém de classe inferior ter, deixamos de lado. No dia seguinte ele foi encontrado à deriva perto do cais onde os barcos abastecem, todo comido pelos peixes. A partir desse dia nunca mais me aventurei por ali.
Saudades, quantas saudades dos pique-niques que toda semana acontecia num pedaço pouco espaçoso de um velho edifício. Era com certeza um apogeu para nós crianças. A Josemara, que era uns anos mais velha que a gente, organizava esses inesquecíveis eventos. A compra de todos os itens da nossa festinha particular ficava por conta dela. Lembro-me: dos pacotes de fandangos e cheetos, pipoca Guri, biscoito de maizena piraquê, chocolates chokito e prestígio, paçocas, doces de leite, mariolas... Enchíamos a barriga de tanto comer. Uma das melhores coisas era a reunião de todos na sala brincando de adedanha, bisca, ludo, pega-varetas, e o inesquecível banco imobiliário. Lembro-me nitidamente também que ficávamos todos reunidos na escada em frente de casa e ali, brincávamos de contar os carros que passavam. Todos queriam escolher o fusca e o Fiat 147, que eram os mais populares no fim dos anos oitenta.
Alguns fins de semana eram aguardadíssimos por mim e o meu irmão Adriano, e as noites eram curtas devido à necessidade de pular da cama quase de madrugada. O motor da camionete D-20 já se ouvia há algum tempo, e depois de nos despedirmos dos pais, íamos contentes para fora. Alcione e Fernanda já nos aguardavam, e sobre a carroceria seguíamos viagem com destino à Fazenda do Ferrinha no bairro Machina. Lá realmente era um verdadeiro paraíso, pois tinha incontáveis pés de fruta como: goiabeira, amoreira, coqueiro, bananeira, caramboleira... Almoços e cafés da tarde inesquecíveis. Futebol no campinho. Diversão com os cachorros, e a inesquecível macaca que ficava presa a uma corrente na parte lateral da casa. À noitinha, voltávamos extremamente cansados e felizes.
São quase duas da tarde, e já me preparo para um prazeroso dia. Pego o par de tênis, e sigo ansioso para o campinho de terra com alguns pedregulhos no morro da delegacia. Lá, estão todos os amigos de infância, e juntos jogamos por horas sob um sol escaldante. O cansaço é visível na face de todos, mas o prazer e diversão que essas poucas horas nos proporcionam, compensa. O sol já se escondeu atrás das esbeltas montanhas, enunciando o término de nossa pelada. Na volta, as conversas voam desenvoltas pelos ares, e cada um segue pra sua casa.
Quase todas as noites, me recordo muito bem, esperava o meu pai dormir e com muita destreza pegava a sua Monark azul juntamente com Naftali, um estimado amigo. Saíamos felizes pela noite adentro. Lembro-me que íamos muito na praia do morro, no restaurante Alibabá e os Quarenta Quibes, e ficávamos jogando sinuca e totó até umas três e meia da matina. Na volta, ainda parávamos no Bar Real (um memorável bar) para tomarmos deliciosas vitaminas e saborosos salgados. Quase sempre eu pedia mamão ao leite, juntamente com quibe. O melhor da história é que eu não pagava nada. Nafta era muito mão aberta, e jamais se negou a pagar essas pequenas coisas. Quando o destino não era o da Praia do Morro, fazíamos algo muito legal. Depois que o restaurante fechava, combinávamos de sair a pé, geralmente pelo Centro mesmo, e a cada caçamba de lixo que encontrávamos, tacávamos fogo. Às vezes, a fumaça era tão intensa que corríamos feito loucos pelas ruas, com medo dos moradores chamarem a polícia. Mas tão logo nos afastávamos, repetíamos a ação. Outra coisa que fazíamos era apertar o interfone em vários edifícios. Para ser sincero, eu tinha bastante receio por causa dos porteiros, mas Nafta era arteiro demais! Sei que são atos de puro vandalismo, mas faz parte da minha infância. Certa noite de verão, talvez janeiro de 1990, fomos ao parque que tinha acabado de se instalar no campo do Davino Mattos. Foi uma noite pra se esquecer. Tinha muitos brinquedos legais, mas fomos no que mais gostávamos: o famoso carrinho bate-bate. Estava tudo correndo bem, até entrarmos na pista. Se me recordo, o tempo estimado pra brincar eram de três minutos, mas o funcionário deu apenas uns dois minutos no máximo. No exato momento em que nos direcionávamos para a saída, o Nafta resolveu reclamar. Disse que não concordava com o tempo dado, e queria uma satisfação. Eu, com onze anos apenas, fiquei nesse chumbo cruzado. Enquanto o chumbo era de palavras tudo bem, mas logo os ânimos se exaltaram das duas partes, e o funcionário foi ao encontro de meu amigo. Nafta, uma cara nervoso que não levava desaforos pra casa, tirou suas havaianas e partiu pra cima do cara. Nessa hora, surgiu uns cinco funcionários do nada e voaram nele! Eu, assustado, só pude observar meu amigo correndo feito louco por entre as pessoas como uma frágil gazela na fuga dos leões. Resolvi me mexer, apanhei as suas sandálias e fui-me embora. Lá fora o encontrei, e seguimos o percurso de casa. No caminho ele dizia que era carioca, perigoso, que queria voltar e dar cabo de todos. Ele não se conformava com tamanha humilhação e eu somente ria de tamanha ousadia.
Foi uma época muito boa, onde o brilho do sol clareava todos os cantos de minha casa, de minha rua... A pureza com que via o mundo era a força propulsora que me levava aos jardins mais floridos, onde as flores jamais morriam. Ontem de madrugada, ao ouvir o som dos barcos de pesca que cortavam o canal em direção ao alto mar, não contive as lágrimas ao lembrar-me desses mesmos barquinhos que passavam todos os fins de noite em frente de casa. A minha esposa me olhou sem nada entender, e sem proferi nenhuma palavra fechei os meus olhos e tentei adormecer para que algum sonho me conceda alguns minutos naqueles tempos de ouro...
Alexsandro Menegueli Ferreira