A MELHOR COMPANHIA - CAPÍTULO 09 - Por um fio
Um novo dia. Da sacada reflito sobre minha vida cheia de coisas dentro de um mundo vazio. Começo a perceber o quanto sou sozinho, mas ainda reluto em aceitar o óbvio. Tento ter uma vida mais leve, sem cobranças, embora anseie por reciprocidade. É disso que sinto mais falta em minha vida, reciprocidade. Quem eu sou neste casamento? Uma planta de aquário?
Saio da sacada em direção a sala e começo um diálogo.
- Ella, já estou pronto, vamos ao rapel?
- De novo? Eu não quero ir.
- Não é de novo, há muito tempo que eu vou ao rapel sozinho.
- Vá sozinho novamente, é você que gosta, eu não gosto disso.
- Mas você já se perguntou se eu gosto de ser um faz tudo no teatro, eu também não gosto, mas te acompanho porque fico feliz em ver você fazendo o que gosta. O meu prazer não é ser contrarregra, meu prazer é estar ao seu lado e te apoiar naquilo que é importante para você e acabo gostando de fazer porque sinto que é bom para nós dois um apoiar ao outro.
- Mas eu vou lá fazer o que lá no rapel?
- Fazer a mesma coisa que faço quando você me convida para participar das coisas que você gosta, ser uma verdadeira companhia.
Ella sorriu, disse para eu ter cuidado e que não chegasse tarde. Finalizou dizendo que precisava pensar no próximo espetáculo. Isso desencadeou uma nova fúria em mim que guardei em meu coração mesmo sentindo que essa balança não estava equilibrada. Preciso que Ella seja uma companheira viva em nosso relacionamento, desejo este que prefiro deixar neste nível de cobrança porque amor e atenção não se imploram. Tento ser leve nesta construção, ao invés de pedir companheirismo tento ser a ela o que desejo que seja para mim, afinal problemas todos os casais têm, principalmente em um casamento de anos como o nosso. Preciso entender e comunicar isso, mas confesso que está cada dia mais difícil.
Saio de casa olhando para frente, mas pensando no que deixei para trás. A única certeza foi que neste momento não me abandonei, isso significava que estava fora de fase, mas não conseguia me perceber. Então liguei para o Ricardo dizendo que estava a caminho conforme planejamos a algumas semanas, mas com uma única mudança, de que eu iria sozinho desta vez.
Chego na casa do Ricardo e ele está na frente, pronto me esperando, rindo como sempre, mas desta vez foi sarcástico dizendo:
- Você saindo sozinho desta vez? Você faz isso sempre.
- Ah Ricardo, vamos ao que interessa, venha me seguindo.
- Espera aí, não tão rápido, já que está sozinho porque não dá carona para a amiga da minha cunhada? Assim meu carro não vai tão cheio.
- Ok
Pâmela vem em direção ao carro sorridente e empolgada, daria uma bela foto com aquela composição, as linhas da cerca na altura de sua cintura desapareciam em meio ao buganvila florido e a casa em background dava um ar de cena para calendário. Entrou no carro dando bom dia de um modo bem amável que fiquei um pouco sem jeito. Seguimos pela estrada em meio a um certo silencio embora tenha percebido que ela esperava que eu alimentasse um diálogo. Perguntei que musica queria ouvir, mas pediu que eu escolhesse, então coloquei uma de minhas preferidas, claro. O sorriso dela ficou mais solto e seu corpo mais à vontade, agasalhando seus pés no painel do carro.
- Você não gostou de eu colocar meus pés aqui.
- Não, não é isso, é que essa composição daria uma bela foto natural, mas não posso fotografar e dirigir ao mesmo tempo, se não mataria nós dois.
Falamos rindo, disfarcei bem, mas meu pensamento colocou outro rosto naquele corpo. Um dia pedi para Ella colocar os pés exatamente naquela posição para fotografá-la, mas Ella não teve paciência e não montou a pose que sugeri. Então pela primeira vez imaginei o rosto de minha esposa em uma atitude de outra mulher. Algo muito perigoso estava acontecendo comigo.
Após vários quilômetros de asfalto e barro chegamos ao Jardim do Ed, uma pousada ecológica com vários atrativos naturais e algumas práticas esportivas de interação direta com a natureza, tais como arvorismo, canoagem, meditação, rapel, tai chi chuan, tirolesa, trilha, yoga, e outros esportes tradicionais. Ed, como de costume vem receber seus visitantes com hora marcada na frente da pousada esbanjando seu sorriso de quem chegou na casa dos cinquenta anos de idade muito de bem com a vida e dizendo que já estava tudo certo e como já conheço o espaço posso me adiantar com minha turma até o local onde Ângelo o instrutor já estava nos esperando.
Ângelo transmitia tranquilidade pelos seus dez anos de serviço militar como bombeiro de resgate e agora sócio de Ed na pousada onde é o responsável pelos esportes radicais e técnico em segurança de trabalho na pousada.
- Lorenzo, andava sumido, até que enfim voltou.
- É meu amigo, voltei. Temos novidades aqui no rapel? O Ed já te passou as informações que o rapel é para um grupo de família?
- Sim, está tudo sob controle, aquela via do morro que você gosta vai ter que esperar porque seu grupo tem criança.
- Tudo bem, eu já esperava por isso.
Pâmela intervêm
- Como assim, tem uma vista melhor que essa e não posso conhecer?
- Acho que pode sim se você souber convencer o Lorenzo, disse Ricardo olhando para nós sorrindo.
Então Ângelo gargalhou concordando com Ricardo.
- Lorenzo, vá lá com ela. Você já conhece a via e os equipamentos, fique à vontade.
Macaco quer banana? Claro que eu quero, então disse sim para todos pensando no tempo que estava me privando deste prazer. Pâmela sorriu e disse que sua vida estava em minhas mãos. Seguimos com os equipamentos e suprimentos em nossas mochilas, mas agendamos de o carro ir nos buscar no final do passeio.
Pelo caminho disse a Pâmela.
- Olhe para o chão, o que você vê?
- Terra, areia. Mais areia do que terra.
- E a vegetação?
- Arbustiva
- Ótimo, você vai perceber que tudo mudará, a natureza tenta nos comunicar algo à medida que caminharmos.
Pâmela se sente segura e bem à vontade diante de mim como anfitrião da floresta e começo a explicar a conexão das coisas quando ela faz a pergunta que eu queria que fizesse.
- Lorenzo, a cor do chão mudou, o que é isso?
- E o que mais mudou?
- Os arbustos estão um pouco maiores e já tem arvores de pequeno porte.
- Sinta a natureza. A mudança da vegetação está dizendo que o solo mudou, a densidade da floresta aumenta à medida que os nutrientes do solo também aumentam. Contaram-me que para entrar na mata devemos pedir permissão as entidades protetoras e guardiãs, verdade ou não, quero que você se entregue a essas tradições e entenda que esse passeio não é um simples turismo, e sim uma experiencia de emoções e instintos que muitas vezes negamos existir.
Então feche os olhos e me ouça. Em uma fala pausada continuei... Fique ereta e respire lentamente, encha os pulmões de ar, inspire de... vagar... E quando os pulões estiverem cheios solte de... va... gar... E repita... Ponha as mãos no abdome e sinta com as mãos o modo que você respira... Não, não. Feche os olhos Pâmela...Inspire... Expire... Mentalize que o ar que entra em seus pulmões é um ar puro da interação do chão, dos rios, das arvores, pense que o ar que você respira a conecta com a natureza, peça permissão e mentalize que sua energia se tornou igual a energia do ar da floresta e, portanto, seus pensamentos vibram de acordo com este lugar... Agora abra os olhos de vagar e diga como você se sente.
Pâmela responde com a voz bem pausada e calma.
- Me sinto leve, como se não fosse a mesma, não sinto nem frio e nem calor, estou com disposição para conhecer tudo.
- Este é o espírito, então venha.
Andamos por uma trilha intermediária alguns minutos observando os pássaros e pequenos animais, em sua morada e as árvores, até chegar em uma plataforma de aproximadamente uns doze metros de altura, o início de uma ponte de cordas. Pâmela se espanta com a plataforma, expressando seus receios enquanto sorrio e estendo as mãos dizendo que é seguro e que devemos ir pois o carro vai esperar por nós lá embaixo na última árvore do circuito, e se não formos ao encontro dele vão pensar que nos perdemos, e vão demorar para descobrir que desistimos e para não os deixar esperando devemos ir logo.
Vestimos os equipamentos de segurança completo, engatamos o talabarte na linha de vida e seguimos na ponte de cordas rumo a primeira árvore do circuito. Caminho de costa para ficar frente a frente com minha convidada para perceber suas expressões e temores ao mesmo tempo que falo sobre as coisas ao nosso redor. Chegamos na primeira arvore e seguimos por outra ponte de cordas até a segunda arvore. A ponte de corda possui uma suave inclinação, portanto sem perceber estamos cada vez mais alto.
A floresta, a mata, não a trato como uma unidade porque ela é feita de partes, como tudo aliás, a mata é composta por arvores individuais, assim as chamo de indivíduos. Recordo da ocasião em que presenciei a supressão de um indivíduo de grande porte, um Paricá, uma arvore a ser derrubada. Nesta ocasião a engenheira agrônoma que acompanhava a supressão estava registrando o episódio com uma filmadora especial que captava a frequência térmica dos corpos e nesta filmagem a cada poda de galho o indivíduo aumentava de temperatura como uma pessoa em estado febril que em seguida retomava temperatura normal, porém algo ainda mais impactante ocorreu no ato da supressão total, a temperatura do indivíduo se elevou ainda mais, estressada pelo corte e em fim abatida, semelhante a uma pessoa dando seu último suspiro.
Esse episódio reforçou ainda mais em mim o fato de que arvores, digo esses indivíduos arbóreos, são seres vivos que anseiam pela vida como nós, mas que, nem eles e nem nós, não possuímos uma forma inteligível de comunicação, afinal não entendemos seus gritos e choros, porém hoje sei que o estresse térmico antes do abate é sintoma de um ser vivo em agonia, portanto, hoje me apego muito mais aos fatos sem explicação das florestas.
Continuamos nosso trajeto em meio aos indivíduos mais expressivos como castanheiras, jatobás, tauari, entre outros até avistarmos o nosso destino, uma majestosa e imponente Samaúma que possui uns três metros de diâmetro e uns cinquenta metros de altura, mas vamos ficar em uma plataforma que está a quarenta e cinco metros do solo.
Pâmela só conseguia gritar entusiasmada e eu gritava junto, igualmente entusiasmado com tanta beleza ao redor. Estávamos em uma das maiores arvores do mundo com sapopemas gigantes. Em minha mente vinha uma enxurrada de informações de forma quase que incontrolável motivada por toda aquela informação visual. Uma arvore de tal altura só poderia ter raízes gigantescas e profundas para equilibrar a altura e nutrição necessária, então vinham analogias a minha mente do quanto a vista me dava fôlego e ter Pâmela ali dividindo a experiencia me fazia um bem que não sabia explicar. Eu estava nas alturas literalmente, com a pessoa errada e talvez por isso estivesse sentindo que minhas raízes pudessem chegar ao inferno.
O carro chega no pé do indivíduo e duas pessoas sinalizam que estão prontas para fazer a segurança em nossa descida. Sendo sincero, o inferno é afrodisíaco, e frágil como estava, meus amigos Ângelo e Ricardo devem ter pensado que me deixar com Pâmela seria bom pra mim e fantasiei ficar nesta arvore até o pôr do sol pois começava a perceber em seu olhar que ela estava pronta esperando por mim, mas no arranjo da descida, na verificação de segurança voltei a ficar sóbrio quando dei o primeiro nó. Cada nó tem um nome próprio e o nome deste é “nó fiel”!!! Remeti na mesma hora em meu compromisso com minha esposa, imaginando que abri brechas no meu casamento. Peguei a corda e fiz o enlace correto no dispositivo chamado de freio oito, agora percebendo que precisava frear meus sentimentos e carências afetivas, do contrário, não meu corpo, mas a minha alma se esborracharia nos conceitos morais que construí para mim mesmo.
Descemos vagarosamente. Percebi em Pâmela o desejo e necessidade de ser protegida naquela descida, mas me vi por um fio de distância naquilo que chamava de linha perigosa da amizade e do afeto em estado de carência. Mantive então focado na segurança e na descida quando finalmente fomos amparados por dois guias embaixo que nos parabenizaram pela coragem e ousadia. Pâmela finalizou a descida extasiada e sorridente pelo sucesso de sua primeira aventura radical. Então revelei que estava cansado e pedi aos dois ajudantes que nos guiassem pelo parque visto que eu já tinha chegado em meu limite do conhecimento sobre o local.
O decorrer do passeio foi preenchido por outras atividades cheias de adrenalina para todos, cada um testados em seus limites. Quanto a mim começo a temer pelo meu casamento.