A MELHOR COMPANHIA - CAPÍTULO 03 - Adormecido

O dia inicia cedo com a energia saltando aos olhos... As 8 em ponto já estou no trabalho de computador ligado esperando a estagiária, faço revisões sobre o que devo fazer com ela. Está atrasada e fico preocupado com nosso cronograma e sobre sua formação, afinal ser pontual também é critério de avaliação, mas vou contornar isso de um modo bem sutil, utilizando a ACP, consideração positiva incondicional, empatia, congruência e as respostas reflexivas. Uma forma de encaixar um treinamento conteudista com aplicação tendo em vista a relação interpessoal.

Situação perfeita para encaixar a ACP.

Fabiana chega atrasada meia hora, mas vou direto ao ponto.

- Então moça, vamos lá.

- Desculpe senhor Lorenzo, é que...

- Não precisa se desculpar, é só chegar na hora certa amanhã, vamos ao que interessa. Vou te levar a um lugar bem interessante, não é novo e nem longe, mas é bem didático. Venha comigo, iremos fazer uma viagem no espaço e no tempo.

- Como assim?

A minha mente viaja rápido demais para ela, com certeza um defeito meu, creio que o que percebo é um quebra cabeça já montado, de uma paisagem que ela nunca ouviu falar, então a responsabilidade é toda minha, mas como posso segurar minha digressão se há tantas coisas acontecendo em minha vida? Esse conhecimento vem em uma enxurrada tentando passar pela dimensão da minha boca, claro que do volume da minha mente para o afunilamento da minha fala tudo sai sob alta pressão... Me seguro e penso em nivelamento, como eu gostaria de ser tratado na juventude, com paciência e empatia, claro.

Entramos no carro. Enquanto dirigia apreciava a paisagem e os questionamentos de Fabiana. Percebi mais uma vez o tom de voz inseguro de alguém inexperiente, o que me faz pensar novamente na responsabilidade que está em minhas mãos. Essa sede de experiencia que a juventude possui é o motor do conhecimento e ver assim tanta potência me faz querer apostar cada vez mais na superação do ser humano. Chegamos rápido no local e eu disse:

- Fabiana o que tenho para dizer na verdade é tudo visual, cabe aqui perceber que é verdadeiro afirmar que uma imagem vale mais que mil palavras e cada palavra desperta em mim uma emoção. Veja.

- O que?

- Pela sua expressão percebo que você não está vendo o que eu estou vendo. Vamos tentar novamente, mas de uma maneira diferente. Fique aí, distante e desenhe o que está vendo neste corte de estrada.

Desenhar o que se vê ativa a percepção. Vemos da escala macro à escala de mão posto em uma folha. Aquilo que se vê de imediato é facilmente explicável, mas na verdade sendo um teste de percepção, esse exercício torna-se a porta de entrada para trazer a luz do visível as formas que por absoluta falta de treino eram ignoradas. Importante neste momento é fazê-la entender que sempre há o invisível por traz daquilo que julgamos já conhecer.

Então, aquele jeito tímido permanece tímido, mas com várias questões provocadas a partir do meu direcionamento. Vejo sorrisos quando acerta e algumas expressões de frustração quando descobre que ainda não percebeu o que mostro. A cada momento lhe dou devolutivas e reforços positivos e negativos, instigando-a querer mais em um processo de oferta e escassez.

Igual a uma gata que corre atrás da bola puxada por um fio Fabiana se entrega, sem perceber, ao vício do conhecimento onde cada resposta para cada dúvida alimenta o desejo de descobrir as respostas das perguntas que eram geradas pela imagem que a fiz se debruçar. O que quero ensinar com essa metodologia é que o todo que apresento não é um conceito unitário, mas um todo feito de partes. Quando cremos que um objetivo é unitário o tornamos grandioso e difícil de ser alcançado e nos sentimos muitas fezes incapazes de compreender. O que faço agora é compartimentar esse todo que se apresenta aos olhos dela, e minhas devolutivas neste processo de aprendizagem são pequenas partes deste todo para que seja mais fácil compreender que o todo, muitas vezes inalcançável, são como partes de um brinquedo de montar. Na prática a exponho a pequenas metas com recompensas conjugadas, estimulando-a.

Assim o processo de aprendizagem torna-se leve aonde nós dois crescemos. O que ela recebe? Recebe conhecimento em prosa e verso e percebo isso captando seus sentimentos. O tom de voz ainda é de uma moça tímida, mas já não é mais trêmula e insegura, então trabalhei sua timidez e insegurança da forma correta. E o que eu recebo? Recebo o privilégio de fazer parte de uma grande jornada de conhecimento e aprendizagem. Amo o que faço.

Com a certeza de ter cumprido o objetivo da manhã, com um sorriso e tranquilidade digo:

- Fabiana, paramos por aqui hoje, e amanhã teremos mais, é quase hora do almoço...

Me adianto para buscar Ella, a esposa, para o almoço. Minha mente faz as mesmas reflexões que ecoam em minha cabeça desde domingo, então faço tudo no automático e enquanto as reflexões me deixam distraído, absorto em divagações, minha mente se cansa. Viajo, do almoço ao teatro, do teatro ao trabalho e do trabalho para a última saga.

Deixo Ella, a esposa, do teatro para a aula de teatro e sigo para academia. Minha necessidade de extravasar energia está maior que antes, mas fico me perguntando o que está acontecendo. Porque estou cheio de pensamento automáticos sobre a minha vida, o que me incomoda tanto... Não sei, mas correr tira de mim uma preocupação, correr funciona como abrir o ralo dos problemas, onde eles escorrem e não sobra mais nada. Terminado os 10 minutos de corrida vou para a musculação e decido aumentar a carga, cada movimento forçado faz aumentar a dor e fadiga muscular e isso esvazia totalmente a minha mente enquanto termino a série. Como é terça hoje não tem Moai Tai, hoje é jiu-jitsu.

De quimono, cansado e de mente vazia me coloco na frente do meu adversário, tento não pensar em nada exceto que estou cansado e que por isso quero que termine logo. Olho para os olhos dele e levanto as minhas mãos imaginando que estou na floresta com um urso e que só tenho um tiro... Deixo o adversário me puxar, e como um jogador de xadrez ofereço um gambito, e ele aceita e me puxa, mas eu também o puxo, puxo sua mão com as minhas duas mãos na direção do meu peito me jogando para trás, trazendo o adversário ao solo e estrangulando com as pernas, meu army lock encaixou perfeitamente, ganhei. Não fui eu, foi um animal dentro de mim.

Hora de ir para casa. Em casa a noite de ontem se repete.

E assim se foi o terceiro dia.

Shahriyar Tahan
Enviado por Shahriyar Tahan em 04/02/2024
Reeditado em 27/02/2024
Código do texto: T7991685
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