O Espírito De Prata - Capítulo XVI

Capítulo 16

Uma Biografia

Parte 2

O ano de 1973 talvez tenha sido o mais importante de toda a minha história, tanto no que concerne à minha profissão quanto no que diz respeito à minha vida pessoal. Fatos marcantes, cujas conseqüências mudariam, para sempre, o curso de minha existência, se deram nesse ano.

Em janeiro, por ocasião do vulto que minha carreira solo havia tomado, meus companheiros de Sexteto Austral e eu decidimos, de comum acordo, encerrar nossas apresentações mensais no Antares.

Comunicamos nossa decisão ao Brito e ele concordou, fixando, como data da nossa última apresentação, o dia 26 de fevereiro.

No dia marcado, após termos feito a melhor de todas as nossas apresentações, meus companheiros e eu nos sentamos confortavelmente em uma mesa especialmente reservada para nós pelo dono do Antares, que, juntamente com grande parte dos freqüentadores do lugar, transmitiu-nos efusivas saudações e cumprimentos afetuosos.

Passados cerca de quarenta minutos, Márcio Krigher pediu-nos licença para ausentar-se, afastou-se de nós por alguns instantes e regressou à nossa mesa acompanhado por um casal que ele, gentilmente, nos apresentou.

O homem, cujo rosto me parecia familiar, era Telêmaco Barbosa de Souza Dias (Téo Dias) – o afamado músico que, dez anos antes, me havia ensinado a tocar contrabaixo. A mulher era Heloísa Maria do Carmo Krigher – irmã de Márcio e namorada de Téo.

Heloísa era, segundo as palavras do seu irmão Márcio, além de letrista brilhante, uma talentosa flautista. Já a meu ver, ela se traduzia como o produto indefectível do feliz e harmonioso matrimônio do Êxtase com a Perfeição.

Assim que os meus olhos e os de Heloísa se fitaram, sentimo-nos ambos fulminados pelo misterioso raio do Amor. Amor que marcaria, eternamente, o transcorrer dos nossos destinos.

No decorrer de todo o tempo em que estivemos próximos, Heloísa e eu quase não nos falamos. Os intensos olhares que trocamos, no entanto, a cada distração de Téo, tudo diziam acerca de nós e do sentimento que, a partir daquele exato momento, passava a nos envolver.

Depois da despedida do Sexteto Austral no Antares, Heloísa e eu passamos a nos encontrar com freqüência, o que, sem sombra de dúvida, despertava a ira no coração de Téo.

Nossos encontros eram casuais. Mas, sempre que nos víamos, a chama do Amor se apresentava entre nós.

Chama calada. Chama contida. Chama a que não ousávamos dar vazão.

Claro estava que Heloísa não amava Téo. Claro estava que Téo não nutria por mim um sentimento de amizade. Entretanto, era eu o intruso que se metera na outrora já consolidada relação existente entre Heloísa e Téo, o que me obrigava a afastar-me dos dois. Uma obrigação que, por mais que eu quisesse, não conseguia cumprir.

Em abril, graças à intervenção do amigo Sérgio Santana – ex-pianista do Bonanza Jazz Trio, dei início a uma tournée de quatro meses pela Europa.

No “Velho Continente”, dividi meu tempo entre shows e gravações. Gravei um disco ao lado do trio de rock lusitano Os Sylvas e outro em companhia do maestro italiano Henrico Bianchini.

Em agosto, a convite de Bruno Passos – ex-tecladista de apoio do Conjunto Luna 7, lancei-me em nova digressão pela América do Norte.

Em terras norte-americanas, freqüentei palcos e estúdios com grande assiduidade. Assiduidade que me rendeu a gravação de mais dois álbuns. Um em companhia dos irmãos canadenses Jacques, Michel e Gerard Montélier. Outro ao lado do competentíssimo bandleader estadunidense James Whalter.

Voltei ao Brasil na primeira semana de novembro, trazendo, na mala e na mente, dois projetos.

O primeiro era o de um novo disco, ao qual seria dado o nome de “O Espírito De Prata”. O segundo era o da construção de um estúdio de gravações próprio, o qual se chamaria “GKF Studio” e teria, como proprietários, além de mim, meus inseparáveis amigos e colegas de ofício Márcio Krigher e Francisco Ferrari.

Para o estúdio, o Márcio, o Chico (Francisco Ferrari) e eu nos associamos financeiramente e compramos um salão desocupado em uma das últimas ruas de Novo Empíreo. Resolvemos que só cuidaríamos da mobília e do equipamento do estúdio quando encontrássemos, em nossas agendas, uma folga substancial.

Para o novo disco, deleguei a Francisco Ferrari as funções de selecionar e de organizar os músicos. Pedi-lhe que não medisse esforços para garantir a inclusão de Heloísa Krigher e Téo Dias no elenco do álbum.

Seguindo a ditosa trajetória introduzida pelo ano anterior, 1974 apresentou-se diante de mim como uma espécie de conspiração plena do destino a meu favor.

Em janeiro, a pedido de minha gravadora, registrei, em compacto simples, a canção “Lejos”, fruto de uma parceria minha com o poeta argentino Eduardo Merino. Parceria que já nos havia rendido doze composições. Todas, até então, inéditas.

Acompanhou-me, durante a gravação, um excelente coletivo formado por brilhantes músicos oriundos de diversos países da América Latina.

Representando o Brasil, estava minha flautista favorita – a mais que brilhante Heloísa Krigher.

Foi a estréia dela em estúdio. Foi um dos mais belos momentos por mim vividos.

Da marcante cumplicidade existente entre Heloísa e a flauta, emanava um encanto quase sobrenatural. Ouvi-las tão unidas, como se uma só fossem, era experimentar a mais pura sonoridade celeste.

Foi naquela gravação que ouvi, pela primeira vez, Heloísa tocar sua flauta.

Meus lábios invejaram o instrumento. Quiseram ser, ao menos, tocados pelos lábios tentadores daquela linda flautista. Quiseram ser e, de fato, foram.

Foi a primeira vez que nos beijamos. Um beijo que ficaria gravado em nossos íntimos como um indelével souvenir de Amor.

Ocupado por uma longa série de apresentações ao lado de seus companheiros do The Kings, Téo Dias não nos acompanhou na gravação. Por isso, felizmente, não pôde assistir à clara demonstração do Amor que, cada vez mais, atava ao de Heloísa o meu destino.

Depois da curta cena de Amor que protagonizamos, Heloísa e eu procuramos evitar um ao outro. Todavia, sem hesitar, o destino, com seus truques, caprichos e ardis, insistia em nos aproximar.

O estrondoso sucesso alcançado por “Lejos” em praticamente todo o continente americano fez com que a gravadora encomendasse a mim um long play gravado totalmente em idioma Castelhano.

Por não dispor de tempo que me permitisse a elaboração de novas composições, ainda mais em Castelhano, nem de condições que tornassem possível a formação de um novo coletivo de músicos a quem eu pudesse confiar a função de acompanhar-me durante a gravação do long play, aproveitei, para o referido álbum, as canções que já havia composto em parceria com Eduardo Merino, utilizei, como conjunto de apoio, o mesmo coletivo de músicos que me havia acompanhado no compacto simples de “Lejos” e, deste modo, tive, mais uma vez, ao meu lado, a graça e o encanto, a flauta e o talento da musa Heloísa Krigher.

Vinte dias bastaram para que ensaiássemos e gravássemos todo o repertório do disco em Castelhano, o qual foi intitulado “Dulce Cadena” e posto à venda, simultaneamente, nas principais capitais latino-americanas, no final do mês de fevereiro.

Atendendo a uma sugestão minha, a gravadora optou por resumir a tournée de divulgação do referido álbum a uma reduzida série de shows. Shows em cuja execução não pude contar com a participação de Heloísa, que teve de ser substituída pelo flautista peruano Raul Garcia.

Raul era um músico bastante renomado. Já havia participado de inúmeras gravações em estúdio. Sua grande experiência era inegável. Todavia, por razões demasiado óbvias, pelo menos, para mim, não trazia ele, em seus lábios, a mesma doçura que os de Heloísa evocavam quando postos a serviço da flauta e da canção.

Téo havia acabado de regressar de seu compromisso com o The Kings. Achava-se, portanto, no direito de exigir, para si, atenção exclusiva por parte de Heloísa, que, embora não o amasse, costumava agir junto a ele como uma namorada mansa e obediente.

As apresentações de divulgação de “Dulce Cadena” ocorreram exatamente conforme o esperado.

Foi em uma delas que o produtor do disco em questão – Sr. Ismail Castelar – apresentou-me o famoso nutier cubano Pepe Calderón, fabricante dos maravilhosos contrabaixos Rosa Negra, a quem, tempos mais tarde, eu encomendaria a fabricação do contrabaixo com que atuaria em “O Espírito De Prata”. Contrabaixo que, após a gravação do mencionado long play, seria ofertado por mim a Téo Dias, como uma tentativa de reatar a amizade que, um dia, ele e eu chegamos a ter.

Em maio, concluída a bem sucedida tournée de divulgação de “Dulce Cadena”, retomei os procedimentos que deveriam culminar com o lançamento do álbum “O Espírito De Prata”.

Os músicos, o produtor e os técnicos já haviam todos sido selecionados por Francisco Ferrari, que também havia conseguido, junto a seu pai – o Sr. Lalo Ferrari – o sítio que viria a nos servir de locação para a composição e o ensaio do citado disco.

Maio também me trouxe duas alvissareiras novidades.

Escrita por Rogério Reis, dirigida por Emílio Bonace, protagonizada por David Campos e levada ao ar pela TV Tribuna (canal 8), a telenovela “Ventos Da vida” teve, como música de abertura, na maviosa voz do seresteiro Francisco Simão – um dos meus maiores incentivadores no início da minha carreira – a canção “É O Amor Quem Canta Por Mim” – versão composta por Heloísa Krigher para “C’est L’amour Qui Chante Pour Moi”, concebida por Gerard Montélier e interpretada por mim oito anos atrás.

Inspirado em conto homônimo escrito por Laura Porto, o filme “Memórias De Um Desertor”, concebido e dirigido por Homero Ruy, adotou, como trilha sonora, uma seleção de canções interpretadas por mim ao longo de toda a minha carreira, desde o disco que gravei em companhia do Bonanza Jazz Trio em 1962.

No início de junho, toda a equipe selecionada por Francisco Ferrari se retirou, juntamente comigo, para o sítio Saint Germain, de propriedade do Sr. Lalo Ferrari, a fim de compormos e ensaiarmos todo o repertório de “O Espírito De Prata”.

Cumprindo-se o que eu havia solicitado ao Chico (Francisco Ferrari), Téo e Heloísa integraram o time que me ajudaria na concepção do álbum. Time que, além de contar com os já mencionados Francisco e Lalo Ferrari, Márcio Krigher, Téo Dias e Heloísa Krigher, também tinha, em sua formação, Maurício Fróis, Osmar Meniach, Mário Meniach, Paulo Reis, Lysias de Paula, Charles Moreno, Renato Lucci, Mauro Couto, Thomas Kleimer, Amadeu Krigher, Walter Gianoto, Vicente Waldman e Cristiano Granrio.

Formávamos, modéstia aparte, o que se poderia chamar de um verdadeiro “Dream Team” musical. “Dream Team” que, tempos depois, as próprias contingências da vida, somadas ao ciúme e ao rancor de Téo, se incumbiriam de desfazer.

Hebane Lucácius