O Espírito De Prata - Capítulo XV
Capítulo 15
Uma Biografia
Parte 1
Há momentos, na vida de um homem, que nenhuma palavra é capaz de descrever. Existem sensações, em sua jornada, que nenhuma frase é capaz de traduzir. Eis o que tenho vivido nestes últimos dias.
Após vinte anos como Enzo Graziotti – andarilho e único sobrevivente ao incêndio que pôs termo à existência do albergue Casa luz, ter, enfim, exata consciência de quem sou de fato ainda me confunde. Ouvir Lucila chamar-me de “Pai” ainda me emociona. Relembrar o abraço e o beijo apaixonados com que Heloísa me saudou no dia da comemoração dos meus cinqüenta anos ainda me aquece. Recordar as terríveis proezas que Téo Dias concebeu com o propósito único de dar vazão à ira que sentia contra mim ainda me apavora.
De quinze dias para cá, tenho me sentido bastante inspirado. Não só pela recente recuperação da minha memória, mas, principalmente, por ter, ao meu lado, minha filha Lucila e porque, finalmente, dentro de poucos dias, poderei partilhar, com minha amada Heloísa, o leito que me guarda, a casa que me abriga e os dias que me restam.
Contrabaixo, vibrafone, assovio, lápis e papel me têm servido fielmente, obedecendo, sem titubear, aos imperativos da minha inspiração, dando à luz o esboço do que, no futuro, será uma bela safra de canções inéditas.
A notícia do meu reaparecimento alcançou rapidamente toda a mídia especializada em música.
Como conseqüência quase imediata da divulgação, do alastramento e da confirmação da referida informação, recebi, do aclamado pianista estadunidense Bem Woody, uma carta, através da qual, além de pedir-me autorização para regravar “Blue Angel”, ele se comprometia, por meio de seu selo, o Oppen Road Records, a adquirir, junto à minha antiga gravadora, todos os meus fonogramas, a relançar , em CD, todos os meus álbuns e a chancelar o lançamento dos próximos discos que viessem, assim que eu decidisse retomar minha carreira musical.
Com auxílio de Lucila, pretendo responder a epístola de Mr. Woody, aceitando-lhe as propostas e autorizando-lhe a regravação de “Blue Angel”. Também pretendo solicitar à minha amada, tão logo ela volte, que torne a atuar como letrista em minhas composições, restabelecendo-se, deste modo, a antiga e sempre bem sucedida parceria “Elíseo Giardinni & Heloísa Krigher”, a qual tenho a intenção de brevemente transformar em “Elíseo & Heloísa Giardinni”.
Os músicos remanescentes de “O Espírito De Prata” e de “Silver Soul”, meus antigos companheiros de tournées, firmaram comigo o compromisso de me acompanharem no meu retorno à música.
Descoberto por mim no final da década de sessenta, quando ainda atuava como iluminador em peças teatrais, o atualmente renomado diretor de shows Lucas Mauro prometeu idealizar, para a minha volta aos palcos, um espetáculo especial.
Penso dispor de razões suficientes para crer que, depois de um desvio de cerca de duas décadas, minha vida começa a regressar ao seu trilho original. Por isso, temendo um possível êxito, ou, um novo quase êxito, de Téo Dias em vindoura(s) tentativa(s) de homicídio contra mim, faço questão de deixar registrada, para a posteridade, em meu “Álbum De Sensações”, uma breve biografia minha.
Ei-la:
Chamo-me Elíseo José de Moura Giardinni.
Nasci a 1º de julho de 1947, em Novo Empíreo (SP) e quase morri a 14 de outubro de 1975, em Serrânia (SP), vítima de um acidente automobilístico planejado e encomendado por meu desafeto Telêmaco Barbosa de Souza Dias (Téo Dias).
Como todo bom descendente de italianos que se preza, torço apaixonadamente pela Sociedade Esportiva Palmeiras.
Sou filho da costureira e acordeonista amadora sergipana Maria Teresa de Moura Giardinni e do engenheiro italiano Vincenzo Giacomelli Giardinni (Enzo Giardinni), pai da comerciante e empresária Lucila Maria Krigher e namorado eterno da jornalista, flautista e compositora Heloísa Maria do Carmo Krigher.
Fui cantor, compositor, vibrafonista e contrabaixista – ofícios a que, em breve, pretendo voltar a me dedicar.
Fui, entre 18 de dezembro de 1975 e 12 de setembro de 1976, morador do albergue Casa Luz. O único a sobreviver ao incêndio que, também planejado e encomendado por meu desafeto Telêmaco Barbosa de Souza Dias, causou sua completa destruição.
Fui andarilho por cerca de vinte anos, até ser descoberto, resgatado e salvo pela então desconhecida jovem Lucila Maria Krigher, que, tempos depois, descobri ser minha filha.
Vivo, na atualidade, a dádiva de me poder considerar um homem feliz, realizado, satisfeito e apaixonado.
Apaixonado por minha existência; por minha arte; por minha família; por minha amada Heloísa.
Minha relação mais íntima com a música teve início quando eu ainda era criança.
Aos seis anos de idade, comecei a participar de programas de calouros em emissoras de rádio e de televisão da minha região.
O primeiro programa de que participei foi o apresentado pelo seresteiro Francisco Simão, do qual fui declarado vencedor, graças à minha interpretação de Súplica Cearense – clássico de autoria de Nelinho & Gordurinha, tendo, como acompanhante, minha mãe ao acordeom.
Venci todos os programas de calouros de que participei, o que acabou por render-me relativa fama regional.
Aos treze anos de idade, tornei-me músico profissional, atuando como vibrafonista e vocalista em um conjunto denominado Sexteto Austral.
O referido conjunto costumava ser a principal atração das noites de sexta-feira no Bar & Restaurante Antares, de propriedade do Sr. Antero Brito.
Em 1962, deixei o Sexteto Austral para, atendendo aos convites do saxofonista Maurício Fróis e do Bonanza Jazz Trio, participar, como vocalista, de uma série de concertos de Jazz.
Foi ao lado deles que se deu minha estréia em disco.
No ano seguinte, por insistência do amigo Francisco Ferrari, aceitei integrar o Conjunto Luna 7, no qual tive de ingressar como contrabaixista.
Como nada soubesse acerca de como se tocava um contrabaixo, pedi ao Ferrari que me indicasse um professor do referido instrumento. Foi quando conheci aquele que, anos mais tarde, viria a tornar-se meu desafeto, o Sr. Telêmaco Barbosa de Souza Dias (Téo Dias), que, à época, já era um músico bastante famoso, uma vez que integrava um dos melhores conjuntos de rock instrumental do estado de São Paulo, o The Kings, em cuja formação tinha, como companheiros, o genial guitarrista Guilherme Castro (William Karlson) e o brilhante baterista Santiago Esteves (James Stuart).
Três semanas bastaram para que eu dominasse o contrabaixo e assumisse o lugar a mim destinado no Conjunto Luna 7.
Fiz bastante sucesso ao lado dos meus companheiros do Conjunto Luna 7.
Gravamos três discos juntos e chegamos, inclusive, a realizar uma curta digressão pela América do Norte, Digressão ao fim da qual fui procurado pelo compositor canadense Gerard Montélier.
Ele me entregou um envelope contendo uma fita k7 e uma folha de papel toda escrita em francês. Disse-me, em um Português bastante precário, que, na folha de papel, estava a letra de uma composição sua e na fita k7 uma gravação da referida composição. Falou-me que tinha vontade de inscrever sua canção no Festival de Música de Montreal e que desejava ter-me como seu intérprete.
Prometi ao canadense que consultaria meus amigos e que, no dia seguinte, nos encontraríamos no Café Constantine, para que eu pudesse dar-lhe a resposta.
Conversei com meus amigos e eles, ao contrário do que eu esperava, permitiram minha participação no Festival de Música de Montreal.
No dia seguinte, conforme havíamos acertado, Montélier e eu nos encontramos no Café Constantine e eu lhe respondi afirmativamente, impondo-lhe, no entanto, uma única condição, a saber: que o conjunto de apoio a acompanhar-me em minha apresentação fosse o Luna 7.
Montélier aceitou a condição e, no dia 16 de novembro de 1966, todo o Canadá rendeu-se aos talentos de Gerard Montélier e dos sete brasileiros que o acompanhavam, vencedores absolutos do Festival de Música de Montreal com a canção “C’est L’amour Qui Chante Pour Moi”.
Somado a uma série de fatores que acabariam por decretar o fim do Conjunto Luna 7, o sucesso de “C’est L’amour Qui Chante Pour Moi”, lançada em compacto simples um mês após a realização do festival, fez com que meus companheiros começassem a aconselhar-me a dar início a uma carreira solo.
Findas minhas atuações como contrabaixista do Conjunto Luna 7, pus-me a procurar condições que me permitissem lançar o long play, ou, pelo menos, o compacto simples, de estréia da minha carreira solo.
Em fevereiro de 1967, fui visitado por Márcio Krigher – saxofonista com quem eu dividia os palcos na época do Sexteto Austral. Vinha acompanhado por duas propostas, ambas extremamente interessantes.
A primeira delas era a de reunirmos todos os integrantes do Sexteto Austral e nos apresentarmos mensalmente no Antares. A segunda era a de defender uma canção composta por ele e por sua irmã Heloísa – minha futura amada – em um festival que ocorreria em Brasília dali a três meses.
Aceitei imediatamente as duas propostas.
Como todos os antigos integrantes do Sexteto Austral já se encontrassem empregados em outros projetos musicais, decidimos, em consenso, que nossas apresentações mensais no Antares seriam gratuitas.
Uma semana depois de ter sido procurado por meu grande amigo Márcio, principiei os ensaios da canção composta por ele e por Heloísa – minha futura amada.
“Olhos De Fonte”. Assim se chamava a referida canção. Canção por cuja letra, à primeira vista, me encantei.
Infelizmente, àquela altura, não me fora dado conhecer Heloísa – minha futura amada, já que, por uma dessas razões que apenas o destino consegue explicar, somente o Márcio e eu, além dos antigos companheiros de Sexteto Austral, os quais atuariam junto a nós na condição de músicos de apoio, pudemos ir ao festival.
“FESTIVAL EM BRASÍLIA DOMINADO POR UMA JOVEM LEGIÃO DE MÚSICOS PAULISTAS”. Foi com esta manchete que um dos principais jornais da então jovem Capital Federal noticiou nossa vitória em solo do DF.
“Olhos De Fonte” foi considerada a melhor canção do festival; eu o melhor intérprete; Márcio Krigher o responsável pela melhor performance instrumental; Francisco Ferrari o melhor arranjador; os antigos companheiros do Sexteto Austral o melhor conjunto de apoio.
Meus companheiros e eu retornamos de Brasília sem problemas.
Em mim ardia a íntima esperança de que a vitória no festival fizesse com que a esquiva irmã de Márcio Krigher nos fosse receber na Estação Rodoviária de Novo Empíreo. Algo que, infelizmente, não ocorreu.
Apenas o Brito se dirigiu à Rodoviária para nos dar as boas-vindas, oferecendo-nos, cortesmente, um jantar comemorativo gratuito no Antares. Jantar que saboreamos com total e absoluta avidez.
Registrada in loco durante o festival e lançada em compacto simples uma semana depois de sua realização, “Olhos De Fonte” atingiu, em dez dias, a marca de trinta e cinco mil cópias vendidas, o que credenciou a mim a gravação de um long play.
Também intitulado “Olhos De Fonte”, o primeiro álbum de minha vitoriosa carreira solo foi lançado no final do ano de 1967 e teve, como coroamento dos esforços que lhe deram à luz, uma excelente receptividade, tanto perante o público quanto junto à crítica especializada.
Ao êxito de “Olhos De Fonte – em 1967, seguiram os de “Solar” – em 1968, “Eclético” – em 1969, “Ébano” – em 1970, “O Gosto Do Tempo” – em 1971 e “Máquina De Sonhos” – em 1972.
Minha carreira transcorria sem maiores revezes.
Aparições em programas de TV, menções em revistas e participações em programas de rádio tornavam-se cada vez mais constantes e dividiam espaço em minha agenda com uma quantidade cada vez maior de shows por todo o território brasileiro e em alguns países da América do Sul, como Chile, Paraguai, Argentina, Uruguai e Venezuela.
Tinha eu todas as coisas que desejava. Um sonho, porém, a mim ainda se mostrava inalcançável: Conhecer a musa que, há tempos, eu vinha amando platonicamente: Heloísa Krigher, a irmã do meu grande amigo e fiel companheiro Márcio Krigher.
Hebane Lucácius