O Espírito De Prata - Capítulo XIV
Capítulo 14
O Novo Primeiro Dia
Sobre a noite que sucedeu a completa exumação de todo o meu passado, pouca coisa me é dado contar. Posso dizer apenas que Heloísa e eu simplesmente começamos a compensar as quase duas décadas ao longo das quais estivemos separados.
Senti-me, diante dela, exatamente como penso que deva sentir-se alguém que, após expor-se aos perigos de uma longa marcha pelo deserto, por não mais saber fazer a distinção entre verdade e miragem, ao deparar-se com um oásis, hesita, num primeiro momento, em aproximar-se da fonte, mas, cede aos impulsos da sede tão logo descobre ser verdadeira a visão que, à sua frente, se descortina.
Depois de nos fitarmos demoradamente, trocando longos olhares de surpresa e de reconhecimento, atiramo-nos sem medo um nos braços do outro, dando, enfim, asas ao Amor que, há tanto, encarcerávamos em nossos corpos, em nossas almas e em nossos corações.
Já sobre o dia seguinte, o qual entendo ser o primeiro dia completo do meu definitivo renascimento como Elíseo Giardinni, creio-me no imperioso dever de dividir o que me aconteceu com todos os prezados(as) leitores(as) que, até aqui, vêm acompanhando esta minha confusa história de vida.
Com uma ardente profusão de beijos e carícias, Heloísa e eu nos despertamos assim que amanheceu.
Heloísa estava com pressa. Precisava regressar rapidamente à Inglaterra para tratar dos trâmites que a reconduziriam definitivamente de volta ao Brasil e aos meus braços.
Eu, a meu turno, tinha de conversar seriamente com Lucila. Era-me urgente saber como ficaria minha situação, não só no que se referia ao meu posto como funcionário da Companhia da Canção, mas, principalmente, no que concernia à minha condição de hóspede em sua casa.
Poucas horas atrás, Lucila havia descoberto que eu era seu pai. No entanto, isto não a obrigava a manter-me em sua casa, nem a continuar empregando-me como responsável pelo estoque da sua loja de discos. Afinal, foi Téo Dias quem a criou. E era Téo Dias a sua referência paterna, embora o caráter de Lucila em nada lembrasse o dele.
Lucila era uma pessoa bastante compreensiva. Por isso, a decisão que ela tomasse, fosse ela qual fosse, seria prontamente aceita, acatada e atendida por mim.
Naquele dia, Lucila não quis abrir a loja. Disse-me que precisávamos ter uma longa conversa e me conduziu a uma pequena sala situada em sua residência. Sala que, tempos atrás, segundo a própria Lucila, havia sido utilizada como escritório por sua mãe – minha amada Heloísa.
“Olha, pai! Confesso sinceramente ao senhor que fiquei bastante surpresa quando soube que o senhor era meu pai. Porém, à surpresa, seguiu-se uma imensa alegria.
Ser filha do velho Telêmaco Barbosa de Souza Dias incomodava-me bastante. Algo me dizia que ele não gostava de mim, que ele não me aceitava como filha.
Ele tratava minha mãe como um objeto e era vergonhoso, para mim, ter, como pai, um homem que não media esforços para causar sofrimento à minha mãe.
Às vezes, passava pelo meu espírito a sensação de que, de alguma forma, era eu a culpada por todas as agressões que meu pai cometia contra a minha mãe.
O senhor não faz idéia do quanto eu sofria sempre que tal sensação me assaltava o ser. Era doloroso demais. Meu coração lancinava como se milhões de setas o houvessem cravado ao mesmo tempo.
Saber que não sou filha de Téo Dias, mas do senhor, que sempre foi, é e será o grande Amor da vida da minha mãe, é uma libertação para mim.
Sinto-me, finalmente, livre da culpa que, por tantos anos, carreguei comigo e que, por muito tempo, oprimiu meus sentimentos. É como se, o fato de ser sua filha, apagasse, da minha alma, uma nódoa que eu considerava indelével.
Muito obrigada, Sr. Elíseo José de Moura Giardinni! Muito obrigada por ser meu pai!
Quero que você continue a morar na minha casa e a trabalhar na minha loja pelo tempo que desejar.
Estou certa de que o senhor, em breve, se casará com a minha mãe e que, depois disso, desejará adquirir uma casa própria, a fim de garantir uma privacidade maior ao casal. Sei também que, daqui a algum tempo, o senhor também desejará retomar a sua vitoriosa carreira de cantor. Desejo, do fundo do meu coração, que o senhor tenha muito sucesso. O senhor merece ser alguém muito bem sucedido, tanto em sua trajetória profissional quanto em sua vida pessoal, ainda mais depois de tudo que o senhor passou.
É pena que o senhor e minha mãe não possam mais me presentear com um irmãozinho!
Farei tudo o que estiver ao meu alcance para que se regularizem, o quanto antes, as situações da sua identidade, do seu reconhecimento como meu pai e da minha nova assinatura, através da qual passarei a me chamar Lucila Maria Krigher Giardinni. – assim falou-me Lucila, portando consigo uma voz doce e uma serena aura de anjo. Do anjo que ela foi e ainda tem sido para mim desde o dia em que me retirou de sob a marquise da Companhia da Canção, me abrigou em sua casa e me cercou de cuidados. Cuidados de filha.
Ao ouvir as carinhosas palavras de Lucila, nada pude lhe dizer. Incapaz de conter as lágrimas, chorei copiosamente no ombro de minha filha, que, amorosa e delicadamente, me consolou e estancou meu pranto.
Em casa de Lucila, a primeira visita que recebi como Elíseo Giardinni foi a de um senhor idoso, de aparência quase centenária, cujos traços não pude reconhecer.
Andava com muita dificuldade, sendo amparado, a cada passo que dava, por uma moça bastante jovem. Provavelmente, sua neta.
Assim que nos deparamos, ele, sorrindo, começou a me dizer, com uma voz fraca, quase inaudível:
“Salve, menino Elíseo! Você não deve estar me reconhecendo! Faz muito...! Muito tempo que não nos vemos! Estou muito feliz com a sua volta! Você fez, e ainda faz, muita falta à Música Popular Brasileira! Precisava muito ver você antes de partir! Sou Francisco Simão! O seresteiro! Foi no meu programa de calouros, na Rádio Candeias, que você cantou pela primeira vez em público! Bendita seja a vida que me fez vê-lo antes que a morte viesse me buscar! Bendita seja a vida! E abençoado seja você, menino Elíseo!”
Foi com muita emoção que abracei o meu descobridor e beijei-lhe a fronte. Sua visita representou, para mim, o sinal de um vitorioso recomeço.
Francisco Simão morreria três dias depois de me visitar. Entretanto, sua presença veneranda junto a mim, naquele importante dia da minha vida, jamais seria esquecida.
A visita do seresteiro à residência que Lucila e eu compartilhávamos durou pouquíssimo tempo. Foi o que se costuma chamar “visita de médico”.
Francisco Simão sequer esperou pelo almoço, gentilmente oferecido por Lucila.
Trocamos pouquíssimas palavras e ele logo pediu à sua acompanhante que o levasse de volta à sua casa. Sentia-se muito cansado e bastante fraco.
Desculpou-se por não poder ficar conosco por mais tempo, despediu-se de nós e partiu, transmitindo-me uma nova bênção e afirmando-me nunca ter deixado de acreditar que eu estava vivo.
À visita do meu descobridor, seguiram-se muitas outras no decorrer do dia.
Muitos rostos que não puderam estar presentes na comemoração do meu qüinquagésimo aniversário foram encontrar-me na casa de Lucila e relembraram-me uma série de fatos que pertenceram à minha trajetória de vida pregressa. Fatos que, muitas vezes, mesmo no tempo em que eu ainda vivia como andarilho, costumavam acenar-me timidamente , quer através de sonhos, quer através de lampejos que, àquela altura, me pareciam incompreensíveis e inexplicáveis.
As horas se passaram celeremente naquele dia. As visitas se sucederam como cenas de um grande filme, devolvendo, à galeria da minha existência, quadros inteiros que o abismo da desmemória, por um longo tempo, havia devorado e engolido.
à noite, exausto, não pude esperar o jantar, dei “Boa Noite!” a Lucila, retirei-me para o meu quarto e logo adormeci. Adormeci e sonhei. Sonhei algo incrível!
Conduzido por mãos diáfanas, misteriosas e invisíveis, vi-me deixar lentamente o quarto e a casa que me abrigavam e caminhar por uma longa estrada iluminada, ao fim da qual, acabei por chegar a um imenso e belíssimo jardim. Um jardim cujas flores, todas viçosas, de variadas espécies, pareciam sorrir para quem as olhasse.
Em meio às flores, percebi a presença de um vulto.
Em princípio, não pude reconhecê-lo pelos traços. Contudo, assim que o ouvi assoviar uma melodia bastante parecida com a “Blue Angel”, distingui-o rapidamente. Era Márcio Krigher. Meu velho amigo Márcio Krigher.
Tão logo percebeu que eu o havia reconhecido, o vulto aproximou-se de mim calmamente e, com o tom afável que sempre caracterizara a sua maneira de falar, começou a protagonizar comigo o seguinte diálogo:
“Olá, Zinho! Sente-se feliz em me ver?”
“Olá, Márcio! É claro que eu me sinto feliz em te ver! Muito feliz, meu amigo! Muito feliz! Mas,... Espera um pouquinho!... Se você já morreu e eu estou vendo você bem aqui, na minha frente, isto quer dizer que eu morri também! Eu morri, Márcio? Eu morri logo agora? Logo agora que me foram dadas a oportunidade de voltar a ver Heloísa e de saber que tenho uma filha, a Lucila? Isso não é possível! Deus não podia ter esperado mais um pouquinho para me levar, eim, Márcio?”
“Fique tranqüilo, Zinho! Você não morreu! Só veio me fazer uma visita aqui no Plano Maior! Quando a gente dorme, nosso espírito se desdobra e pode ir livremente aonde quiser, ou, aonde for determinado pela Providência Divina! Entendeu, meu amigo?”
“Entendi, sim, Márcio! Entendi e confesso estar bem aliviado por não ter morrido hoje!”
“Vamos nos sentar ali, na relva! Temos muitas coisas a conversar! Afinal, já faz um longo tempo que não nos falamos tão de perto!”
“Tem razão! Vamos nos sentar e matar a saudade!”
“Sabe de uma coisa, Zinho? Já faz um bom tempo que eu venho acompanhando você!”
“Um bom Tempo? Como assim? Um bom tempo!”
“Assim que me recuperei do acidente automobilístico que me fez deixar a Terra, fui apresentado a três grandes amigos seus, o Sr. Giovane Graziotti, o Ananias e o Jovino! A nós foi transmitida a missão de ajudar você na recuperação do seu passado! As Potestades Superiores consideraram que você era merecedor dessa dádiva! Afinal, vinha suportando com profunda resignação seus anos de Letes!
Estávamos com você quando, na Rua das Araucárias, você começou a assoviar a “Blue Angel” e foi surpreendido pelo Téo! Também estávamos com você quando decidiu abrigar-se sob a marquise da Companhia da Canção! Fomos nós que inspiramos Lucila a levá-lo da marquise até a casa dela!
Estávamos com você o tempo todo! Não foi à toa que, no dia em que Lucila, por inspiração nossa, decidiu conduzi-lo até o Memorial Elíseo Giardinni, você se deparou com o Sr. Giovane Graziotti no espelho e até conversou com ele!
Você, a Heloísa, a Lucila, o Téo, o Sr. Graziotti, o Ananias, o Jovino, o Franco Ferro, os Ferrari, eu, estamos ligados um ao outro por laços muito fortes! Laços que têm atravessado vidas e mais vidas!
Felizmente, todo o sofrimento que você passou e o modo como o encarou proporcionaram um enorme progresso ao seu espírito! Você, deste modo, pôde recuperar o Amor de Heloísa e de Lucila e, em breve, voltará a desfrutar da minha amizade!”
“Como assim, voltarei a desfrutar da sua amizade!”
“Em breve, voltarei à Terra e você me receberá! Serei seu filho com Heloísa!”
“Como Assim, será meu filho com Heloísa? Heloísa e eu não temos mais idade para ter filhos!”
“Serei dado à luz em uma família estranha. Mas, atendendo a um insistente pedido de Lucila, vocês acabarão por adotar-me!”
“Nossa! Que interessante, Márcio!”
“É muito Interessante mesmo, Zinho! Mas, ainda tem mais!”
“Mais? Como assim, mais?”
“Você retomará brevemente a sua carreira de cantor. Mas, terá de dedicar-se a uma nova missão.”
“Uma nova missão? Que nova missão?”
“Caberá a você a missão de reedificar o albergue que o acolheu.”
“Reedificar a Casa Luz? Mas, como posso fazer isso?”
“Você e a Heloísa encontrarão alguém inesperado que os auxiliará nesta importante missão.”
“Tudo bem, Márcio! Aceito esta missão! Esta e todas as outras missões que me forem dadas!
Aceito também ser seu pai adotivo! Será um tremendo privilégio para mim!
Sou muito grato a você, ao Sr. Graziotti, ao Ananias, ao Jovino e, principalmente, a Deus, por vocês nunca terem me desamparado.
Sempre tive comigo uma grande certeza. Uma certeza que sempre me acompanhou, mesmo nos tempos de Letes. Sempre estive certo de que, das mais altas esferas, havia alguém a olhar por mim, a me proteger e a me inspirar.”
“Que bom, Zinho! É maravilhoso saber que, mesmo em meio ao abismo, sua fé jamais cessou! Nossa conversa está muito boa! Porém, eu tenho que ir! E você...! Tem de voltar à Terra! Há muita coisa e muita gente lá à sua espera! Até breve, Zinho!”
“Até breve, Márcio!”
“Nos vemos na Terra!”
“Nos vemos na Terra!”
Findo o agradável colóquio entre Márcio e eu, vi-me ser conduzido de volta à Terra, à minha casa, ao meu quarto e ao meu corpo pelas mesmas mãos diáfanas, misteriosas e invisíveis que, outrora, me haviam retirado de mim.
Acordei assustado com o barulho do despertador e, antes de sair do aposento em que se guardara meu sono, tomei o cuidado de registrar, com toda a riqueza de detalhes possível, em meu “Álbum de Sensações”, o sonho que acabara de ter. Sonho que achei melhor não revelar a Lucila, mas a Heloísa, assim que ela regressasse de vez da Inglaterra.
Hebane Lucácius