O Espírito De Prata - Capítulo XIII

Capítulo 13

Resgate Íntimo

Revelada pelas outrora incógnitas páginas de um simples caderno, a notícia de que Heloísa e eu havíamos protagonizado uma tórrida noite de Amor apanhou-me em flagrante surpresa.

Meu Amor por Heloísa era mais do que evidente, uma vez que fora seu nome o único signo a sobreviver à desmemória motivada pelo acidente que fez cessar o contrato que à Terra mantinha atada a vida do Márcio.

À surpresa, porém, seguiu-se um desejo.

Desejei, com toda a força do meu íntimo, que a Lucila houvesse cabido a graça de ter sido o fruto da referida noite e não a mera conseqüência de um costume partilhado por sua mãe e pelo Téo.

É óbvio que, se assim houvesse sido, a graça não teria pertencido a Lucila. Mas, a mim. Afinal, ser chamado de “Pai” por alguém tão especial como Lucila seria, sem sombra de dúvida, a maior glória da vida de qualquer homem que se preza.

Infelizmente, tal glória coubera ao Téo. Um homem que, guiado pelo despeito e pelo rancor, não hesitou em empreender o máximo dos seus esforços na tentativa de dar fim à vida de um homem cujo único erro tinha sido amar.

Lucila, nos últimos dias, andava diferente.

Às vezes, no meio do expediente, saía e deixava sob meus cuidados a loja, à qual eu havia regressado uma semana após minha esclarecedora conversa com o Téo.

Depois, sem dar explicações ou informar aonde tinha ido, voltava ao serviço como se nada tivesse acontecido.

Desde o desaparecimento do artista Elíseo Giardinni e a entrada em cena do andarilho Enzo Graziotti, dias estranhos se haviam tornado uma constante em minha vida. Aquele, portanto, seria apenas mais um.

Era uma sexta-feira. Dia de bastante movimento na Companhia da Canção. Entretanto, minha benfeitora pediu-me que não fosse à loja. Solicitou-me que permanecesse em sua casa descansando.

Confesso que não consegui compreender a inesperada recomendação de Lucila. Contudo, obedeci. Afinal, era ela quem, além de pagar o meu salário, garantia-me o teto.

Durante todo o tempo em que permaneci a sós em casa de Lucila, várias foram as pessoas que por lá passaram à sua procura.

Atendi-as todas e, a todas as que indagaram o seu paradeiro, respondi a mesma coisa.

“A senhorita Lucila? Ela está na loja!”

Tal resposta bastou para que cada uma delas me agradecesse e partisse imediatamente rumo à Companhia da Canção.

Alguns daqueles vultos me pareciam bastante conhecidos. Outros, nem tanto. Nenhum, porém, me parecia completamente incógnito.

Comecei então a suspeitar de que todas aquelas visitas à procura de Lucila tinham algo a ver comigo. Algo a ver com o fato de eu ser Elíseo Giardinni.

Ao meio-dia, hora em que minha benfeitora costumava aparecer para o almoço, avistei alguém chegando. Mas, quem vinha não era Lucila.

Era o Tony Charlie que, alegando um movimento atípico na loja, pedia o meu auxílio e se oferecia para levar-me de carro até a Companhia da Canção.

Toda aquela situação me soava esquisita. No entanto, aceitei a carona do Tony e, dentro de cinco minutos, já estávamos os dois no interior da loja.

A alegação de Tony, de certa forma, procedia. Havia, de fato, um movimento atípico na loja. Todavia, não era de consumidores.

Todas as pessoas que, pela manhã, se haviam dirigido à casa de Lucila procurando por ela estavam na Companhia da Canção e me receberam com uma inesperadamente inacreditável profusão de aplausos. Atitude que me deixou profundamente emocionado.

Findos os aplausos, cada um dos integrantes daquela feliz assembléia aproximou-se de mim, abraçou-me e se apresentou.

O primeiro a se apresentar foi Maurício Fróis. Depois, em seqüência, vieram os irmãos Meniach, Paulo Reis, Lysias de Paula, Charles Moreno, Renato Lucci, Mauro Couto, Thomas Kleimer, Francisco Ferrari, Amadeu Krigher, Walter Gianoto, Lalo Ferrari, Vicente Waldman e Cristiano Granrio.

Reparei, então, que, a excetuar-se pelo Márcio, pelo Téo e pela Heloísa, lá estavam todos os músicos que comigo participaram da gravação de “O Espírito De Prata”, o que me causou sincera comoção.

Perguntei a todos por Lucila, cuja ausência estranhei.

Disseram-me que ela havia saído, que tinha uma surpresa para mim e, por fim, pediram-me que, com paciência, a esperasse.

Tentei conversar agradavelmente com os companheiros que comigo compartilhavam o espaço.

Não sei se por terem reconhecido em mim traços de um homem outrora artista e famoso ou por terem sido informados por Lucila acerca da minha real identidade, todos me chamavam de Elíseo e me tratavam com profundo respeito.

Não eram poucos os que me questionavam por onde eu havia andado.

Consequentemente, não foram poucas as vezes em que tive de rememorar o acidente, o acolhimento pela Casa Luz, o incêndio no albergue, os anos de andarilho e o resgate pelas mãos de lucila.

Tudo aquilo provocava em mim uma sensação de imenso desconforto. Sensação que eu teria de suportar heroicamente, caso quisesse exumar finalmente o meu passado.

A inevitável constatação de que, mais cedo ou mais tarde, Téo Dias ficaria sabendo de que o andarilho que, em princípio, ele tinha hostilizado e com o qual, tempos atrás, ele havia conversado não era apenas um homem parecido com Elíseo Giardinni, mas, o próprio Elíseo Giardinni, preocupava-me sobremaneira, já que nada lhe custaria tentar matar-me outra vez.

No relógio do meu ser, o tempo parecia passar com enorme lentidão. Impressão que se agravava com a ausência de Lucila.

De repente, porém, avistei aproximar-se da loja um carro.

Era Lucila que, enfim, chegava, acompanhada por uma mulher bastante parecida com ela, a qual reconheci de imediato.

Heloísa.

Lucila desceu do carro conduzindo a mãe pela mão.

As duas se aproximaram de mim a passos lentos.

Minha benfeitora abraçou-me, beijou-me suavemente a face e me disse, numa explosão de alegria:

“Feliz aniversário, Sr. Giardinni! Espero que me perdoe a ousadia de ter-lhe preparado esta humilde celebração sem que o senhor soubesse e por ter contado a todos os seus companheiros de jornada a sua identidade! Espero que compreenda que eu tive de fazer isto! Afinal, não é todo dia que alguém tão especial como o senhor completa meio século de existência! Parabéns! Muitas felicidades! Muitos anos de vida! Desejo tudo de bom para o senhor e uma vida plena de AMOR e de bênçãos!”

Os gestos e as palavras de Lucila conduziram-me a copiosas lágrimas. Lágrimas que só não foram superiores ao sorriso que se seguiu à aparição de Heloísa bem diante de mim.

Os passos com que Heloísa se dirigiu a mim foram vacilantes. A todo momento, ela parecia hesitar. Em seu rosto, um ar de surpresa ainda se via.

Vencido o trajeto que nos separava, Heloísa abraçou-me ternamente, osculou-me amorosamente os lábios e, quase à meia-voz, falou-me admirada:

“Zinho! Meu AMOR! Eu estou aqui! Fico feliz que esteja vivo! Fico feliz que o Téo não tenha conseguido te matar!

Parabéns, meu AMOR! Espero que você ainda me queira! Porque, se me quiser, amanhã mesmo, pedirei ao jornal em que eu trabalho que me transfira de volta para o Brasil e não te deixarei nunca mais!

Zinho! Eu te amo! Eu ainda te amo com a mesma intensidade de quando nos conhecemos! Com a mesma intensidade com que vivenciamos aquela maravilhosa noite de AMOR!

Nem você, nem a Lucila, sabem! Mas, aquela noite rendeu-nos um fruto!

É isto mesmo que você está pensando! Lucila não é filha do Téo! Ela é sua filha, Zinho!”

O modo como Heloísa me chamou, “Zinho!”, fez com que Elíseo Giardinni reassumisse misteriosamente a superfície do meu ser, antes ocupada por Enzo Graziotti. A partir daquele instante, todas as coisas que eu apenas sabia e mesmo aquelas que eu ignorava a respeito de Elíseo Giardinni se tornavam sensíveis à minha alma.

Meu íntimo acabava de ser resgatado.

Meu passado, enfim, havia sido exumado.

Tudo graças à força do Amor reinante entre Heloísa e eu.

Atenta a tudo o que se passava entre sua mãe e eu, Lucila ouviu todas as revelações trazidas a mim por Heloísa. Todavia, diferentemente do que eu poderia imaginar, ela demonstrou grande contentamento ao saber que era eu o seu pai e não o Téo.

Minha alegria, naquele momento, foi, simplesmente, incalculável, pois, no transcorrer de um instante único, ao mesmo tempo em que me devolvia minha identidade e meu grande Amor, concedia-me a vida a excelsa honra de ganhar uma filha.

Tão céleres quanto alegres, as horas se passaram. No fim da tarde, cantaram-se os parabéns e, no início da noite, desfrutei a dádiva de retornar à casa que me abrigava acompanhado pelas duas mulheres da minha vida. Minha amada Heloísa e minha filha Lucila.

Horas mais tarde, após jantarmos socegadamente, nos dirigimos cada qual ao seu quarto.

Repassei na mente todos os acontecimentos que se tinham dado ao longo do dia que se findava e, repentinamente, me dei conta de que o meu grande amigo Giovane Graziotti estava coberto de razão quando, através do espelho, afirmou-me que eu estava bem perto de recuperar o meu passado e que Lucila teria um papel importante neste processo.

Avançando um pouco mais em minhas divagações, notei que ele também havia acertado ao julgar-me parecido com seu amigo Vincenzo Giardinni. Afinal, meu pai era, justamente, o próprio Vincenzo Giardinni.

No dia seguinte, Heloísa regressou à Inglaterra prometendo voltar definitivamente ao Brasil dali a um mês.

Passados exatos trinta dias, Heloísa estava de volta ao Brasil e nós três confortavelmente estabelecidos na casa em que, certa feita, num gesto de profunda humanidade, decidira Lucila acolher um andarilho que, pelo destino, acabava de lhe ser apresentado.

Mudanças precisaram ser feitas na disposição da casa. Afinal, desde o nosso definitivo reencontro, não restou saída a Heloísa e a mim, a não ser deixarmo-nos reger pela cadência suave e intensa do Amor e dividirmos o mesmo leito.

Hebane Lucácius