O Espírito De Prata - Capítulo XI
Capítulo 11
Acerto Secreto
Por mais incrível que possa parecer, Lucila não achou estranho que eu a chamasse de “filha”. Ela até sorriu quando me referi a ela com tal substantivo!
Na verdade, nem mesmo eu estranhei chamá-la assim. Afinal, era dessa forma que ela me tratava. Com o cuidado e a atenção que se imaginam que uma filha zelosa deva dispensar a um pai em apuros.
Infelizmente, eu sabia que minha benfeitora era filha do Téo. Logo do Téo! Um homem que, segundo minhas pouquíssimas recordações, a mim volvia toda a força do seu ódio!
Jamais eu havia invejado alguém antes. Mas, naquele dia, no exato momento em que abracei Lucila, beijei-lhe a fronte, transmiti-lhe a bênção e a chamei de “filha”, tive uma inveja imensa do Téo.
Ao contrário de mim, que passara de artista renomado a mero andarilho, ele sim, havia se tornado um homem feliz e bem realizado. Casara-se com o grande amor de minha vida, a Heloísa. Tivera com ela uma filha linda, a Lucila.
Lucila era uma moça sensata, gentil e de elevados princípios morais. Jamais permitiria que eu seguisse à diante com o plano que, já há tempos, se vinha tecendo em minha mente. Todavia, por respeito, fidelidade e gratidão àquela a cuja bondade eu devia a excelsa graça de ter deixado as ruas e passado a residir provisoriamente sob um teto, relatei-lhe todas as coisas em que vinha pensando.
Disse-lhe, entre outras coisas, que pretendia procurar seu pai, que desejava conhecer as razões que nutriam o ódio que ele sentia por mim, e que para isso, seria importante que eu readquirisse a aparência do andarilho com o qual ele havia se cruzado na Rua das Araucárias.
Pedi-lhe que me entendesse e que compreendesse os meus motivos.
Apresentei-lhe, a favor do meu plano, a alegação de que, conhecer a fundo as razões que levavam Téo a odiar-me, poderia ajudar-me a recompor melhor as recordações que eu trazia, esparsas e dispersas, difusas e confusas, em minha frágil memória ressurgente.
Ela, num sinal de bênção, afagou ternamente o meu rosto. No entanto, não deixou de me alertar acerca dos perigos que poderiam assaltar-me caso seu pai, o temível e imensamente rancoroso Téo Dias, chegasse a suspeitar da minha real identidade.
Quanto a isso, garanti-lhe que ela não precisava ficar preocupada.
Para atingir meu intento, não hesitei em renunciar a quaisquer vaidades físicas.
Submeti meu corpo a um intenso regime alimentar. Deixei a barba, os cabelos e as unhas crescerem. Afastei-me da loja por tempo indeterminado. Recuperei o traje que vestia no dia em que Lucila me encontrou e me resgatou junto à marquise da Companhia da Canção. Vesti-o diariamente, durante, pelo menos, uma hora. Período em que busquei, defronte o espelho, recriar, em detalhes, cada mínimo traço do andarilho que fui por mais de duas décadas.
Havia proposto a mim mesmo um prazo de dois meses para a completa execução do meu plano. Sendo assim, com um mês e duas semanas já decorridos, deixei a residência de minha benfeitora e tornei a fazer o trajeto que sempre fazia nos tempos em que eu vivia como andarilho.
Faltando uma semana para que o prazo por mim estabelecido se findasse, senti que a hora havia chegado.
Dirigi-me à Rua das Araucárias. Cheguei-me junto ao posto em que Téo outrora me flagrara em suspeito assovio. Esperei que o relógio da igreja badalasse as três horas. Comecei a assoviar, com suposta displicência, a “Blue Angel”.
Pouco tempo bastou para que Téo me ouvisse, descesse correndo as escadas de sua residência, abrisse o portão, fosse até mim e, silente, me encarasse, com os mesmos olhos inquisitoriais da primeira vez.
“Incomodo, senhor?” – indaguei.
“Sim! Pro-funda-mente” – respondeu-me, irado.
“E o senhor pode me explicar por quê?” – tornei a indagar.
“Em tese, eu não poderia. Mas, vou contar a você. Desde que me prometa não revelar a ninguém. Se bem que... Você não passa de um andarilho. Na certa, não deve ter muitos amigos. Portanto, não revelará a ninguém o que eu for lhe contar.
A história, no entanto, é muito longa. Não há como contá-la aqui. É melhor que entremos em minha casa e, enquanto lhe sirvo um café, conversemos acerca do motivo que me leva a detestar esta canção que você estava assoviando.” – disse-me, um pouco mais paciente.
“Tudo bem, senhor! – respondi, enquanto lhe adentrávamos a casa.
“Para começo de conversa, você não precisa me chamar de “senhor”. Afinal, como todos os seres humanos, eu tenho um nome. Chamo-me Telêmaco Barbosa de Souza Dias. Entretanto, todos me conhecem pela alcunha de Téo Dias.
Sou músico. Toco contrabaixo desde a infância.
Integrei um conjunto famoso chamado The Kings.
Esta música que você está assoviando foi gravada por um contemporâneo meu. O Elíseo Giardinni.
Elíseo começou a carreira como vocalista em um conjunto que se chamava Sexteto Austral. Grupo musical em que ele também tocava vibrafone.
O conjunto que Elíseo integrava chegou a fazer sucesso. Mas, acabou se dissolvendo.
Com isso, ele começou a excursionar com Maurício Fróis e o Bonanza Jazz Trio. Todavia, a temporada de concertos deles foi curta.
Desempregado, Elíseo foi até mim com o objetivo de me pedir auxílio.
Arranjei para ele uma colocação no Luna 7. No entanto, para integrar o Luna 7, Elíseo precisava aprender a tocar contrabaixo em um mês e meio.
Emprestei-lhe o contrabaixo e, por um ínfimo valor monetário, ministrei-lhe as aulas de que necessitava para entrar no Luna 7.
Elíseo ingressou no Luna 7 e eu continuei no The Kings.
Quando o The Kings acabou, Elíseo já era um artista bem sucedido.
Uma vez por mês, porém, ele costumava se juntar aos seus antigos companheiros de Sexteto Austral e dar uma canja de graça no Antares.
Foi lá que um dos muitos amigos que tínhamos em comum, meu ex-cunhado Márcio Krigher, teve a infeliz ideia de apresentar a Elíseo a minha então namorada Heloísa.
Bastou-lhes um olhar para que caíssem de amores um pelo outro.
O tempo foi passando. Heloísa e eu continuávamos namorando. Falávamos até em casamento. Entretanto, à medida que Heloísa e Elíseo se viam, crescia o interesse que os dois mutuamente sentiam.
Elíseo gravou um disco chamado “O Espírito De Prata”. Trabalhei nele como músico de apoio.
O disco foi muito bem nas paradas. Tão bem que acabamos recebendo um convite para gravar uma versão norte-americana do álbum.
Sem me consultarem ou me transmitirem qualquer aviso, Elíseo e Márcio começaram a compor músicas novas para o disco, o qual se chamaria “Silver Soul”, seria lançado como um long play duplo e deixaria de ter doze faixas para contar com vinte e uma.
A primeira composição de Elíseo e Márcio foi justamente a canção que, há pouco, você estava assoviando.
Eles deram a Heloísa parceria na canção.
Eu sabia que ela não havia participado daquela composição e compreendi que Elíseo havia ofertado a ela a parceria, unicamente, para conquistá-la.
Meus ânimos explodiram. Deixei o projeto de “Silver Soul”. Rompi minha amizade com Elíseo e Márcio. Esperei que os dois partissem para os Estados unidos. Propus casamento a Heloísa.
Logo que regressaram ao Brasil, Elíseo e Márcio foram informados de que, dentro do prazo de um mês, Heloísa e eu nos casaríamos.
Não disponho de provas suficientes para tecer tal afirmação. Mas, estou certo de que, pelas minhas costas, Elíseo e Heloísa se encontraram algumas vezes.
Elíseo tinha me traído e, indubitavelmente, pagaria pela sua traição.
A tournée de “O Espírito De Prata” progredia a todo vapor. Elíseo se tornava cada vez mais conhecido e aclamado.
Um dia, contudo, seu êxito, aparentemente, teve fim.
Elíseo e Márcio sofreram um acidente automobilístico. Acidente que eu mesmo provoquei, remunerando um mecânico amigo meu para que, no decorrer de um show, sabotasse o carro dos dois.
Márcio pereceu na hora. Seu corpo foi encontrado quase irreconhecível.
Pensei que Elíseo houvesse padecido o mesmo destino. Cheguei até mesmo a celebrar com ímpeto a sua morte. No entanto, ele sobreviveu.
Encontrei-o numa foto em um jornal de grande circulação. Estava desmemoriado e havia sido recolhido por um albergue, a Casa Luz.
Ver Elíseo incógnito e desmemoriado não me bastou. Queria vê-lo morto. Por isso, contratei um conhecido meu, o Franco Ferro, e pedi a ele que se infiltrasse no albergue e sabotasse suas instalações elétricas a ponto de causar um incêndio de grandes proporções. Um incêndio que pudesse matar Elíseo e não deixar testemunhas.
O serviço foi feito. Até o próprio Franco Ferro morreu.
Hoje, sinto-me feliz por estar livre de Elíseo Giardinni. Entretanto, perder o amor de Heloísa e de minha filha Lucila me foi inevitável. E olha que elas nem sabem dos acidentes que armei!”
Após ouvir a história que Téo acabava de me contar, tive de ser bastante forte para esconder minha revolta.
Não pude deixar de pensar no Márcio, no Sr. Giovane Graziotti, no Ananias, no Jovino, no próprio Franco Ferro.
Todos eram vítimas do Téo. Todos. Até mesmo eu.
Éramos todos inocentes. Não havíamos cometido crime algum.
Também não pude deixar de pensar na Heloísa e Na Lucila.
Que tormentos teriam elas passado nas mãos de um homem que, por conseqüência de seu caráter vingativo e rancoroso, se havia convertido, sem que elas sequer pudessem suspeitar, em um assassino!
Terminada a dura conversa, despedi-me de Téo agradecendo-lhe pelo café e pela confiança e prometendo-lhe que não transmitiria a ninguém as obscuras revelações que ele acabava de me confidenciar.
Aos prantos, regressei à casa de Lucila. Mas, nada lhe contei acerca das coisas gravíssimas que me dissera o seu pai.
Pedi-lhe apenas que me abraçasse, que me consolasse e que rezasse bastante por mim.
Num ato de ternura, ela me abraçou, beijou-me a fronte, afagou-me os cabelos e, à meia voz, me disse:
“Que Deus Te conforte, Sr. Graziotti!”
Certo estou de que o Criador atendeu ao pedido de Lucila. Aos poucos, fui me reconfortando. Readquiri minha força física, recobrei meu vigor espiritual e retomei meu trabalho na loja.
As causas que serviam de alimento ao ódio do Téo me haviam sido expostas. Fato cujo inesperado efeito acabou por render-me uma profunda paz d’alma. Paz que me seria muito útil ao longo da jornada que eu teria de empreender à procura do meu passado.
Hebane Lucácius